DESAFIO DOS ESCRITORES 2017

 

Provocação 2

 

Ponha sua criatividade para trabalhar e construa um conto que contenha uma dondoca adúltera, a Praça dos Cristais e um crachá.

 

Parte da cidade de Brasília foi construída sobre veios de quartzo. Essa foi, muito provavelmente, a inspiração de Burle Marx para criar a Praça dos Cristais, com enormes prismas de concreto, no Setor Militar Urbano.

 

Todos conhecem alguma uma dondoca. É improvável que conheçam alguma mulher adúltera. Mas chegou a hora de inserir uma dondoca adúltera no conto.

 

Possuir um crachá de um órgão público é um objeto de desejo em Brasília e em qualquer outro município brasileiro. Nos dias de hoje ter um crachá significa ter trabalho.

 

Como estarão conectados uma dondoca adúltera, um crachá e a Praça dos Cristais?

 

Acreditamos no seu potencial.

 

 

Boa sorte!

QUASE UM DEVER CÍVICO

 

Indiferente aos miados e ronrons de seu gato serengeti, Luli Penido deixou o luxo da mansão no Park Way com destino à Praça dos Cristais, no Setor Militar Urbano de Brasília. Porém, escolhera o dia errado para seu desfile de Sete de Setembro fora de época. O povo estava nas ruas, dividido em cordões que pretendiam descollorir o país.

 

É ou não é piada de salão? O chefe da quadrilha é o presidente da Nação!

 

― Com licença, madame ― solicitou o chofer pelo retrovisor. ― Pros lados do Memorial JK deve tá essa mesma algazarra. Melhor fazer um caminho diferente hoje.

 

― Apenas me tire daqui, Gastão. Deus, chega a ser risível a determinação desses meninos de rosto pintado. Como se o gado pudesse administrar o açougue… ― divagou Luli retocando a maquiagem.

 

As visitas da dondoca à Praça dos Cristais não se deviam à linhagem de urbanistas ramificada na árvore genealógica de sua família. Apesar da imponência arquitetônica dos enormes blocos de concreto, simulando quartzos irrompendo de um espelho d’água, Lucília Domitila de Castro e Penido buscava por outra expressão artística quando se colocou diante das esculturas.

 

― Eu teria me inspirado em diamantes.

 

Não demorou até um recruta passar por ali assobiando a Canção do Expedicionário. Aquele assobio era a verdadeira razão das idas da ricaça ao monumento. Desaprovada mais uma vez a instalação, Luli caminhou até os prédios onde os oficiais solteiros viviam. Bateu à porta de um dos apartamentos com familiar delicadeza e endireitou o tailleur junto ao corpo desprovido de juventude, mas carente de prazer.

 

A senhora Penido havia descoberto o grande herói da guerra dos sexos de Brasília. Ainda cadete, tenente Bauru resolvera transformar seus dotes físicos em um negócio paralelo. Ninguém na vila militar comentava a movimentação suspeita no apartamento 20. A despeito da rotina, as estatísticas diziam ser impossível que o oficial tivesse tantos tios e tias notáveis. Mas, como muitos dos visitantes mantinham relações estreitas com o alto escalão das Forças Armadas, todos faziam vista grossa sobre as reuniões familiares do combatente.

 

Queridinha dos colunistas sociais, Luli guardava um segredo de capa de revista. O risco sempre valera a pena, mas não naquele dia de agosto. Trajado como quem vai à missa, o rapaz desapontou-a ao pleitear uma conversa séria. Logo ele, que se expressava melhor quando não se ocupava de verbalizações.

 

― Conversar? Que coisa mais antipática! Se não tinha a intenção de tirar a roupa, por que mandou seu canário verde-oliva cantar em meu ombro?

 

Faminta, Luli lançou-se sobre Bauru. Aos tropeços e esbarrões, conseguiram chegar à cama usada como máquina caça-níquel. Enquanto gemia e gritava sobre sua cavalgadura, ela ouviu com satisfação alguém bradar no corredor do prédio: Brasil acima de tudo!

 

Depois do gozo, a mulher remexia as gavetas do criado-mudo atrás dos cigarros baratos que a ajudavam na digestão do sexo venal. Naquele domingo, junto ao maço de Belmont, ela encontrou um crachá ilustrado com um rosto conhecido.

 

― O que isso faz aqui?

 

O oficial tomou com rispidez o documento das mãos de sua cliente e o enfiou no cós da calça vestida às pressas. Estava enciumado da própria intimidade. Com um interesse que não lhe era próprio, Luli tragou do tabaco e, sem rodeios, inquiriu o amante:

 

― Conte-me sobre esse homem.

 

Bauru, apesar de contrariado, preferiu satisfazer a curiosidade da mulher e livrar-se dela antes da Casa da Dinda cair.

 

― Luli, você mora no Park Way, não é mesmo? Ele também. Me procurou porque não suporta mais a própria esposa. Disse que ela parece a Mansão dos Arcos: É vazia, extravagante e ultrapassada. Este crachá foi usado em uma conferência realizada na ONU. O Antero fez parte de uma delegação brasileira que tentou melhorar a imagem do presidente com os gringos. Bom, não é sobre meu outro caso que eu queria falar. Como direi isso, Luli? Lulinha, você é ótima, mas não poderemos nos ver de novo. Ele tem fazendas no Mato Grosso, é deputado federal e quer exclusividade. Acho que acabará seu casamento pra viver comigo. Um dia, serei eu o cara usando um crachá destes aqui.

 

― E você conhece a esposa do deputado Antero Barraforte?

 

― Só sei dos meus clientes aquilo o que me dizem. Nunca perguntei como é seu marido ou o nome dele, perguntei?

 

― Verdade ― assentiu Luli balançando a cabeça. ― E como meu jovem Braddock e esse partidão ficaram íntimos?

 

― Engraçado… Eu o encontrei na Praça dos Cristais. É onde meu passarinho canta pra você, certo?

 

― Não. Não é engraçado. Ainda engraxará muitos coturnos nesta vida, Bauru. O parlamentar no crachá é meu marido. Fui eu quem disse para ele procurá-lo naquela excrescência horrorosa. Antero e eu temos gostos semelhantes, compreende? Ah, não faça esse beicinho! Não suporto vê-lo assim. Esqueça isso. Posso usar seu telefone? Preciso avisar ao deputado que nosso soldadinho preferiu desertar. Entenda o meu lado. Uma das funções da esposa de um homem público é livrá-lo de distrações parasitárias. Não deveria ter ficado ganancioso, praça. Assim, esta capital não decola. Não há mais ufanistas nos bastidores. O poder está cercado de interesseiros.

 

Luli deixou sobre a estante da sala dinheiro suficiente para que seu amante pudesse comprar uma garrafa do melhor uísque. Quando protegida pela privacidade de seu carro, gritou impropérios em francês enquanto estapeava o banco da frente. Recomposta, pôs o ray-ban sobre o rosto ruborizado e declarou:

 

― Nunca quis me envolver em política. Por isso me casei com um cirurgião plástico. Bem, hoje eu abrirei uma exceção, já que o tolinho agora acredita que eu realmente seja casada com aquele parlamentar intragável.

 

― A senhora vai encontrar o doutor Penido no Clube de Golfe?

 

― Ao menos uma vez na vida, Gastão, meu marido pode tomar um Kir Royale sozinho. Toca para a casa do deputado Antero Barraforte. Se aquele marajá não devolver aos brasilienses o que pretende nos subtrair, farei a imprensa invadir a Praça dos Cristais e só levantar acampamento quando um crachá da ONU for encontrado.

 

 

Emerson Braga

Comments: 3
  • #3

    Ticiane (Thursday, 17 August 2017 06:51)

    Como sempre nos presenteia com joias obrigado querido

  • #2

    Marco A (Thursday, 17 August 2017 06:37)

    Sua criatividade, sua capacidade de criar estórias tão interessantes e contá-las num estilo de linguagem tão lindo chegam a causar-me espanto, tamanha a minha admiração. Bom demais! Bom demaaaaisss!!!

  • #1

    Henrique Campanilli (Thursday, 17 August 2017 06:02)

    Incrível. A forma como o desenrolar se dá é algo que me acalenta e me faz rir.