OCULTAS

Antes de tocar a campainha do apartamento onde a confraternização de fim de ano se daria, Margarida endireitou o vestido com uma das mãos enquanto a outra segurava o mimo de seu amigo secreto. Achava antipático presentear alguém que não conhecia e preferia não ter tirado outra mulher. Homens têm gostos tão mais genéricos, pensou no instante em que a porta foi aberta.

 

― Margaridinha! ― exclamou a anfitriã com uma euforia estrangeira à própria personalidade ― Que embrulho mais pequenino. Deve ser algo caro, não? Entre, entre... Coloque seu presente junto aos dos outros e venha conhecer o restante do pessoal.

 

Deve ser esse vestido que não se ajusta, disse Margarida para si a fim de justificar seu desconforto. Após ser apresentada a duas ou três pessoas que não manifestaram muito interesse por ela, pegou uma taça de espumante e aninhou-se em um canto discreto da sala. Algo mais forte a deixaria rapidamente sociável, mas talvez a julgassem se enchesse um copo de vodca.      

 

Sua carteira havia sido assinada há menos de duas semanas e ela ainda não se sentia à vontade com os novos colegas de trabalho. Estava ali mais para não desagradar sua gerente e organizadora do evento do que para conhecer pessoas. Conseguir um bom emprego após um divórcio e depois dos quarenta anos de idade, como haviam dito suas irmãs, era quase um milagre de Natal. A maioria dos convidados pertencia a outros setores da empresa, o que dificultava ainda mais o entrosamento. Margarida ainda tentou trocar olhares com alguns rostos conhecidos, mas todos se entretinham em grupos fechados, divertindo-se com as histórias embaraçosas das confraternizações dos anos anteriores.

 

Acuada entre a obrigação social e o desejo de não estar ali, ignorou as canções natalinas, balbuciando algo de Maria Bethânia. Pensava em retirar o celular da bolsa e zapear na internet, mas preferiu empenhar-se no teatro em que fingia grande interesse pela ocasião festiva. Entre uma dose e outra da bebida, conferia o relógio que parecia disposto a torturá-la. Ficou enjoada antes mesmo de sentir-se bêbada e quis ir ao banheiro. Porém seu gesto foi interrompido pela anfitriã que, após baixar o volume do aparelho de som, anunciou o início da brincadeira.

 

Quando os demais formaram um grande círculo junto à árvore enfeitada com luzinhas verdes e vermelhas, Margarida aproximou-se com o seu presente enquanto a responsável pelo evento anunciava as características físicas e psicológicas do seu amigo secreto. Alguns arriscaram palpites enquanto outros embaraçavam a mulher, pedindo para que ela revelasse de uma vez o nome do agraciado. Sorrisos. Abraços. Agradecimentos.

 

Um a um, os colegas deslocaram-se ao centro da sala e deram continuidade à tradição. Nem todos pareciam felizes com o que haviam ganhado, mas o espírito de equipe ― mesmo que despido de sinceridade e entusiasmo ― mantinha um contentamento letárgico. Ao final da brincadeira, alguém sugeriu que a música voltasse a tocar. Foi quando perceberam que Margarida ainda tinha nas mãos o presente que deveria ter dado.

 

― Quem você tirou? ― Quis saber o engraçadinho do financeiro.

 

De repente posta no centro de uma berlinda, Margarida cravou as unhas no delicado pacote e revelou desconcertada:

 

― Eu não a conheço. Ela se chama Daisy.

 

Os demais presentes entreolharam-se com estranheza, como se procurassem pela dona daquele nome que não lhes era familiar.

 

― Daisy?! ― interpelou a dona da festa ― Não há nenhuma Daisy na empresa, Margaridinha. E quem tirou a Margaridinha? Gente, alguém tirou a Margaridinha? Margaridinha, você tem certeza de que não se enganou? Ainda tem o papelzinho que...

 

― Não! Eu não tenho mais a porra do papel! ― exasperou-se Margarida com a intimidade nauseante imposta por sua gerente ― Olha, eu devo ter lido errado. Todos aqui ganharam seus presentes, não é mesmo? É melhor eu ir embora.

 

Ninguém protestou. Talvez até tenham ficado aliviados com a partida da tia esquisita do setor de recursos humanos. Antes de sumir pelo corredor do prédio, Margarida ainda pôde ouvir a música sendo reiniciada. Muito provavelmente seria o assunto principal pelo restante da noite. Diriam que ela estava bêbada e alguns rapazes a imitariam para que outros rissem. Preferiu não pensar no que acontecia lá dentro e tomou o elevador.

 

Ao ganhar a rua, antes mesmo de respirar aliviada, percebeu que chovia. Levando a caixinha inútil sobre a cabeça, correu até uma parada de ônibus a fim de abrigar-se enquanto chamaria o Uber. Ficou feliz por encontrar ali uma garota, pois a noite já havia avançado além do limite considerado seguro.

 

― Olá. Boa noite ― Disse Margarida ao aproximar-se da jovem cujo traje de festa também se encontrava arruinado pela chuva repentina.

 

― Não tão boa, dona... ― respondeu a menina com franqueza adolescente ― Acabo de passar pelo maior vexame da minha vida. No amigo secreto da minha escola, que tava rolando numa lanchonete aqui perto, eu não achei nem quem me tirou e nem quem eu tirei. Acho que o pessoal aplicou um trote na novata. Seu nome, por acaso, não é Margarida, é? ― zombou com um muxoxo, balançando uma sacola estampada com bonequinhos de gengibre como se quisesse atirá-la sob os carros que passavam velozes.

 

― Sim. Meu nome é Margarida. Daisy?

 

Assombradas, olharam para os presentes que traziam nas mãos trêmulas e, sem saber o que dizer uma a outra, sorriram.

 

À minha amiga Milena Bandeira.

 

Emerson Braga

 

10/12/2017, domingo

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