O OLHAR VAZIO

Jamais havia imaginado que um dia eu inverteria aquele percurso. Enquanto analisava a altura do muro de minha antiga casa, olhei para as papoulas tentando ganhar a rua como eu mesma tantas vezes fizera. Porém, antes que os vizinhos tivessem a chance de ligar para a polícia, a lembrança de ter acordado ao lado de um homem morto me impediu de executar o delito.

 

― O portão tá aberto. Por que tu não entrou? ― perguntou mamãe, sem demonstrar nenhuma surpresa por meu retorno inesperado.

 

A falta do cachimbo conferia à linguagem de meu corpo um aspecto degradante. Tentei disfarçar minha aparência prendendo meus cabelos em um coque mal feito, mas o tremor nas mãos se revelou um oponente invencível.

 

De rosto afogueado e pernas quase sem nenhuma circulação sanguínea, mamãe trazia nas mãos nevrálgicas a feira do dia. Sua saúde debilitada não a impediu de ser ligeira ao me estender a sacola de compras antes que eu esboçasse algum gesto de carinho. O ferrolho do portão gemeu com aspereza, talvez não visse nenhuma gota de óleo desde a minha fuga. Após limparmos os pés no tapete de fuxicos, conservamos a distância de quase uma década até chegarmos à cozinha.

 

Enraizado sobre a pia de lavar louças, o velho filtro de barro se escondia sob a mesma capa de crochê. Acima do fogão, os potes de alumínio ainda guardavam grãos, cereais e, muito provavelmente, algum dinheiro. Apesar de ter passado a maior parte de sua vida dentro daquela cozinha, mamãe se comportou como alguém largado às cegas em território estrangeiro. Remexia gavetas e olhava dentro da geladeira, também abriu a tampa do forno e as portas do armário como se não soubesse o que de fato procurava. Percebendo que minha proximidade a constrangia, retornei à sala.

 

Os móveis gordos, os bibelôs de louça e o piso de tacos de madeira não haviam sido afetados pela rotação do tempo. Ela fez bem em se livrar dos quadros. A alvenaria da casa não foi feita para suportar o peso de nossas recordações, disse para mim mesma, enquanto me distraía olhando para as paredes comidas de hiatos. As cortinas, tão feias como no dia em que parti, eclipsavam quase toda a luz exterior. O impacto daquele cenário socou tão forte meu estômago que, apesar de meu jejum de dois dias, tive de erguer a cabeça para não vomitar. Foi quando reencontrei as teias de aranha contra as quais lutávamos armadas com vassouras de palha. Se tu tiver pena, um dia essas condenadas vão roubar os olhos da gente, me advertia, se equilibrando na ponta dos pés.

 

― Tu sabe que faz mal comer sujo... Comer suja desse jeito — atrapalhou-se. — Anda. Tem uma toalha limpa no varal.    

 

Obediente, arrastei até o banheiro as correntes que haviam nos conservado presas uma a outra. Já sob a ducha, com as duas mãos coladas à parede, senti o jato d’água lavar minhas costas descarnadas. Havia algo de maternal naquela carícia feminina e liquefeita, naquele afago morno, amniótico. Era como se eu renascesse de dentro do corpo violentado que, por tanto tempo, me servira de único abrigo.

 

Diante do espelho, tentei resgatar meu rosto de mulher sequestrado pelo homem que teima em brotar de meus poros todas as manhãs. Com a ajuda de uma lâmina de barbear e da velha tesourinha de unhas, escavei das ruínas de minha indigência um vulto andrógino, de alvura fantasmagórica e olhos descoloridos. Não sou bonita e nem feia. Apenas sou, apesar de sentir que eu não deveria.

 

Duas peças de roupa postas sobre a antiga máquina de costura transformada em console me aguardavam no corredor que dá para a sala. Por ser impossível ganhar peso sob as marquises das lojas que nos vendem fomes, entrei sem dificuldade nas calças do rapaz que eu fora em outra vida.  

 

― Te senta e come antes que esfrie ― disse mamãe quando me aproximei desconcertada, tentando esconder com meus braços os seios que despontavam sob a camiseta.

 

Senti vontade de pegar com as mãos os ovos cozidos e as batatas inglesas, mas meu apetite foi contido pela atmosfera da casa. Apesar da selvageria de um mundo grosseiro e imoral que havia me devorado, segurei os talheres com habilidade após orar em agradecimento.

 

Enquanto eu decidia por qual parente deveria perguntar, fui contida por aquele conhecido sentimento de aflição. Era como se papai estivesse ali, batendo contra a mesa seu olho de vidro e me julgando de dentro da órbita oca. Somente os talheres, que não se submetiam a obrigatoriedade das mordaças, quebravam o silêncio durante nossas refeições em família.

 

Mamãe havia envelhecido mais do que, sozinho, o tempo dela cobraria a juventude. Suas rugas não desenhavam nos contornos da boca a possibilidade do riso. Mesmo com a catarata que avançava, tinha as vistas transparentes, mas pouco se via nelas além daquele vão sem luz. Queria olhar em seus olhos, mas senti vergonha das coisas que eu já havia visto.

 

Se meu rosto não houvesse se rebelado, eu teria fingido uma segurança que não me é natural. Mas a fragilidade de meu teatro foi revelada quando, antes que eu concluísse a composição de uma personagem convincente, o pano de minha tragédia subiu. Primeiro, a baba espessa que escorreu de meus dentes cerrados sobre as batatas quentes e, em seguida, um grunhido assombroso ronronando em minha traqueia. Foi quando desabei.

 

― Anda. Engole esse choro ― pediu mamãe antes de devolver à minha cabeça o seu colo. — Olha, teu pai ficou esquecido de tudo e quase não tinha mais a outra vista. Desconhecia a cara de todo vivente. Tá com mais de ano que ele saiu sem eu ver e sumiu no mundo. Ninguém procura mais por ele. Volta nada. Tenha medo, não.

 

Eu queria confessar o meu pecado, mas ela prosseguiu:

 

― Se esqueça. Se esqueça de tudo. Nossa vida agora é daqui pra frente. Guardei escondido o teu estojo de maquiagem, sabia? Agora tu vai poder ser quem tu é.

 

Naquela mesma noite, depois que mamãe foi dormir, corri para a sala onde enfrentei nova crise de abstinência. De pé sobre o sofá e com uma vassoura nas mãos, destruí as teias de aranha para que eu não tivesse meus olhos roubados. Enquanto a fissura me consumia, rezei pelo velho com quem eu havia dividido meu colchão e meus vícios por quase um ano. Quando o encontrei, ele vagava sem destino pelas ruas do Centro. Me deu pena vê-lo esbarrando nos passantes, daí resolvi levá-lo para vivermos juntos sob o viaduto que me servia de morada. Me chamava de santa, de filha. No dia em que não acordou, logo depois dos paramédicos confirmarem sua morte por hipotermia, decidi voltar para casa. Ao lado do corpo enrijecido do qual me despedi sem lágrimas, as patinhas ligeiras de um gato brincavam com um olho de vidro. 

 

Emerson Braga

10/06/2019, segunda-feira

 

 

Comments: 1
  • #1

    Maria Ticiane Sousa (Tuesday, 26 November 2019 14:56)

    Maravilhoso como todos os outros que tive o enorme prazer de lê