Olá, pintassilgos!

 

Durante o primeiro semestre do ano de 2017, participei mais uma vez do Desafio dos Escritores, um concurso literário nacional idealizado pelo professor Marco Antunes e apoiado pelo Fundo de Apoio à Cultura, pela Secretaria de Cultura e pelo Governo de Brasília.

 

Neste ano, o certame foi organizado pelo talentoso Roberto Klotz ― autor do Manual do Escritor, livro publicado em 2016 ―, que organizou uma comissão julgadora com competência para pontuar os trabalhos apresentados, apontar problemas nos contos e estimular os escritores a desenvolver a qualidade da escrita.

 

Semanalmente, em seis etapas eliminatórias, os escritores apresentaram textos desenvolvidos a partir de uma provocação que continha um cenário, uma personagem e um objeto-chave.

 

Ao final da maratona, consegui uma muito bem-vinda segunda colocação. No decorrer desta semana, apresentarei os contos com os quais participei do desafio. Espero que gostem!

  

Provocação 1

 

Como será que você, escritor, vai desenvolver um conto que tenha como cenário o gramado próximo ao relógio de sol do parque da Cidade, que tenha como protagonista um turista alemão obsessivo e um azulejo pirata?

 

Dicas:

 

O Parque da Cidade é a maior área verde de laser de Brasília. Dispõe de quadras de esporte, pista para caminhadas, outra pista para ciclistas, parque de diversões, churrasqueiras, ambulantes registrados, muita gente e um relógio de sol.

 

Brasília é uma cidade que atrai muitos turistas. Entre eles está um alemão obsessivo. Tão obsessivo que faz questão de ser protagonista no seu conto.

 

 

Brasília surgiu do pó. As linhas suaves e poéticas viraram concreto . Athos Bulcão foi o artista plástico que revestiu as obras com painéis de incríveis combinações de efeito visual. “Onde?” Em todos os lugares: Teatro Nacional, Câmara dos Deputados, Itamaraty, fachadas de pilotis de prédios residenciais, Igrejinha, fachadas de escolas, aeroporto. Haja azulejo bonito, cada um individualmente também é uma obra de arte. De tão vistosos e valorizados, fabricantes inescrupulosos fabricaram peças piratas.

 

O CAÇADOR DE ASTRONAUTAS 

 

Deveria ter sido aquela a mais gloriosa das manhãs de segunda-feira. Hennig Marby desembarcou no Aeroporto Internacional de Brasília, ansioso por abraçar seu destino e retornar à Alemanha como um grande visionário. Trazia na valise desgastada livros de astrofísica, cosmobiologia, ufologia paracientífica – dentre outras publicações famosas e obscuras –, e uma edição espanhola de luxo do Manuscrito Voynich.

 

Usando como aríete o carrinho no qual carregava sua bagagem, removia do caminho os turistas brasileiros que superlotavam o salão de desembarque. Devido à confusa conexão em Lisboa, Herr Marby estava mais irritado que de costume.

 

― Como conseguem parecer tão perdidos na capital do próprio país? ― resmungou com carregado sotaque hamburguês.

 

De caminhar curto e apressado, o simbologista amador parecia menor dentro do casaco de lã listrado que engolia seu pescoço e mãos, conferindo à sua silhueta estoica um caráter divertido. Seus oculinhos sem aros e de lentes grossas não demoraram a encontrar o táxi que deveria conduzi-lo à germinação da Era de Aquário. Pouco fluente em português, encarou o motorista pelo retrovisor e disse com um suspiro impaciente:

 

― Sarah Kubitschek Park.

 

― Ah! O Parque da Cidade! ― constatou o condutor, antes de por o taxímetro para rodar.

 

A manhã estava fresca e primaveril, quase tão prazerosa quanto ignorar os comentários do taxista sobre a arquitetura de Brasília. Não estava ali para fazer turismo, mas para mudar o mundo. Em menos de uma hora reencontraria Mano Castaneda, um suposto matemático andino que havia conhecido há dois anos no místico Vale do Amanhecer, após uma palestra sobre o faraó Akhenaton.

 

Como Hennig Marby, Mano Castaneda também parecia convencido de que o indecifrável Manuscrito Voynich era um manual de instruções para contatar arquitetos celestiais. Após uma intensa troca de correspondência eletrônica entre os dois, Castaneda desapareceu misteriosamente. Mas, uma semana antes de viajar, Marby recebeu um vídeo no qual seu colega pedia para que ele não confiasse em ninguém e guardasse sua pesquisa em segurança. O alemão assistiu à mensagem inúmeras vezes, consumido por sentimentos de insegurança e perseguição. Em um dos frames, percebeu rabiscado na parede por trás de Castaneda, uma latitude, uma longitude e a seguinte inscrição em sânscrito: “Dia do Doutrinador, sob o tempo de Aton, na terceira hora”. Desvendada a charada, Herr Marby deduziu exatamente o lugar, a data e o instante em que deveria encontrar seu companheiro esotérico.

 

Chegando ao estacionamento do parque, Hennig entregou uma nota de 20 euros ao taxista antes de cruzar com indiferença o chão forrado de flores cor-de-rosa, caídas das vistosas paineiras que embelezavam os jardins projetados por Burle Marx. Depois de desviar dos ciclistas e de um grupo de crianças que corria na direção dos pedalinhos, alcançou o relógio de sol próximo ao gramado.

 

― O tempo de Aton ― balbuciou.

 

Quando a sombra do gnômon marcou nove horas, Hennig Marby se aproximou do espelho d’agua no qual se refletia a estrutura de seis metros de altura utilizada para medir o tempo. Com a demora de seu contato, começou a ver inimigos em todos os lugares. Usurpadores de pouco talento interessados no trabalho de sua vida. O vendedor de picolé, a moça de patins, a velha com o cãozinho enfezado, todos eram membros da mesma organização que, há anos, espionava cada movimento daquele determinado alemão que não se entregaria antes de uma boa luta.

 

― Herr Marby.

 

Hennig quase desmaia ao ouvir o próprio nome sussurrado daquela forma. Para seu alívio, logo encontrou a face amigável de Mano Castaneda. Após um cumprimento desajeitado, o homem meio peruano, meio boliviano, levou seu colega aos banheiros do parque, a fim de conversarem reservadamente. Com seu inglês engraçado, mas inteligível, Castaneda perguntou a Hennig Marby se ele gostava do mosaico de azulejos exibido nas paredes externas do banheiro público. Sem entender o propósito daquilo, o alemão exasperou-se e pediu para que o homem revelasse de vez a razão daquele inusitado encontro.

 

— Você precisa apreender o lirismo do que está por vir, meu amigo — continuou Castaneda. — Esse belo arranjo é de Athos Bulcão, famoso artista brasileiro que também colaborou na eclosão do pássaro sagrado chamado Brasília, cidade que esconde muitos enigmas, Herr Marby. E, acredito, o maior deles se encontra entalhado em uma das peças utilizadas no trabalho de Bulcão.

 

De dentro de um cesto de lixo, Mano Castaneda retirou um pacote feito com jornal. Diante do olhar pouco efusivo de Marby, desembrulhou um azulejo com motivos circenses.

 

— Este azulejo, meu amigo… Este simples azulejo foi confeccionado na tradicional fábrica Viúva Lamego, em Portugal. Um dia, Athos Bulcão revestiu com este belo pedaço da História as paredes de alvenaria do Gran’ Circo Lar, demolido em 1999 para dar lugar ao Complexo Cultural da República. Porém, o mais singular está do outro lado desta placa de cerâmica. Eu encontrei, Herr Marby.

 

Ao revelar a face contrária do azulejo, Mano Castaneda ofereceu a Hennig a visão mais poderosa de sua vida: Um texto com a mesma escrita criptográfica do Manuscrito Voynich e, logo abaixo, sua tradução em sânscrito.

 

— A chave! — emocionou-se Marby.

 

— Temo por minha vida. Roubei este artefato das mãos de um homem muito poderoso. Mas eu não poderia deixar que o segredo fosse descortinado por um burocrata, capaz de utilizar o conhecimento hermético para fins nefastos. Agarre seu destino, Hennig Marby! Conduza a humanidade através das estrelas! A chave é sua, mas preciso que me ajude a fugir. Creio que cinco mil euros garantirão minha segurança.

 

Sem ouvir direito o que Mano Castaneda dizia, Herr Marby pôs suas mãos sobre o azulejo e, depois de acariciá-lo demoradamente, devolveu-o ao andino. No dia seguinte, fecharam a transação e Hennig voltou à Alemanha, onde desvendaria o mistério da própria inocência.

 

Em junho daquele ano, Mano Castaneda foi preso na Igrejinha Nossa Senhora de Fátima, junto aos azulejos de outro painel projetado por Athos Bulcão. Planejava vender mais uma réplica fajuta de cerâmica do Gran’ Circo Lar. Sua nova vítima buscava a localização de um tesouro dos índios Goyá, supostamente enterrado sob o Palácio da Alvorada.

 

 

Emerson Braga

quarta-feira, 16/08/2017

Comments: 1
  • #1

    Henrique Campanilli (Friday, 18 August 2017 05:34)

    Brilhante! Segura-nos num mistério intenso que me fez pensar "onde ele quer chegar com isso?" (já que sou cético e sei que também o és) e nos brinda com um final esperado que não esperávamos. Brilhante, meu amigo, brilhante.