O CAMINHO DA ÁGUA

Diante da televisão, Mohsen parece em transe. Como da primeira vez em que assistira ao filme de Luc Besson, a cena final de Léon comove-o.

 

Não serei mais o Jean Reno xiita. Não salvarei minha própria Matilda. Não ensinarei nada a ninguém. 

 

O efeito do ácido inebria sua mente e Mohsen pouco se importa com o corpo obeso e encerado que sangra sobre a king size. É um assassino sereno. Chora de alívio enquanto sorri e pensa em aventurar-se pela Châtelet-Les Halles com a navalha ainda em sua mão, a boca suja de batom e sangue. Desiste. O chão do quarto, forrado com um embolorado carpete lilás de veludo, é seu único amparo. Logo chegarão os comparsas do homem que assassinara e o surpreenderão com a morte do Tête lambuzada em seu rosto. 

 

Serei presenteado com a mesma liberdade e paz que, de um único golpe, arranquei da garganta suja de Alistair.

 

Mohsen sente saudades de Meshed, sua cidade natal, o que lhe parece um sentimento contraditório. Ansiara por toda a vida abandonar a província de Razavi Khorasan e seguir para o Ocidente, onde se transformaria em um iraniano capaz de arrancar aplausos e lágrimas em Cannes. Em coletivas de imprensa, falaria em nome de todas as nações muçulmanas, não em farsi, mas em bem articulado árabe. 

 

Por me amarem, eles entenderão meu povo. Por me amarem, eles escutarão nossa voz.


Apesar da adrenalina que lhe embaçava a mente, revisitou seus últimos dias em casa. Fora uma grande tolice ter batido em Nayib. Aquele soco arrastou-o a Paris, à navalha, ao homem morto. Mas o maldito sunita era um provocador.  Sempre fora. Não era a primeira vez que Nayib dizia obscenidades à Atefeh, irmã de Mohsen. Havia algo de americano naquele garoto, algo de demoníaco escondia-se por trás de seus dentes tortos, seu débil riso de escárnio. Esmurrado, Nayib sangrou e riu, como se adivinhasse a proximidade da morte. Não seria condenado à forca sozinho, carregaria um desafeto. Quando a bosta e a urina escorressem por suas pernas, agonizaria vingado.

 

Dias após o atrito com Nayib, Mohsen foi arrastado por seu tio Farhad para um dos muitos quartos da casa onde vivia toda a família Panahi. As lágrimas imediatamente brotaram no rosto pueril de Mohsen, que cedeu ao costumeiro assédio aceitando-o com resignação.

 

Não queria fazer aquilo, jamais quisera. Por seis anos o irmão de sua mãe submetera-o àquele desvio repulsivo. Enquanto Mohsen chorava de vergonha e dor, a curra proporcionava ao tio um gozo sublime. Se delatasse o agressor, o menino arruinaria o nome da própria família. Assim, escolhera manter silêncio e aceitar o suplício quase rotineiro como purgação.


― Mohsen, precisas ir embora do Irã ― sussurrou o homem com a boca colada ao ouvido do sobrinho. Seu bigode áspero roçava o lóbulo enojado do rapazinho que tremia indefeso sempre que ouvia aquela voz medonha. A mão calejada do tio pousada sobre sua boca, o imberbe corpo pressionado entre a fotografia de Ruhollah Khomeini e o peito de Farhad, sujeito odioso, cujos olhos febris entregavam-se sem resistência à cegueira que o guiava para dentro do corpo de Mohsen.

 

― O que há entre Nayib e ti? ― perguntou Farhad. Colérico, inquiriu o sobrinho como faria o marido de uma esposa adúltera, antes de apedrejá-la, antes de atirá-la aos cães raivosos de Meshed.

 

Por que ele esbraveja? Por eu ter batido em um sunita de merda?, questionou-se mentalmente o rapaz. Não. Era outro o motivo para a exasperação do homem que o vilipendiava com frequência dolorosa. Vingativo Nayib. Não queria morrer sem a companhia de um inimigo que temesse de fato, sem devolver a humilhação que levara por dias estampada na cara.

 

― Olhe, me escute, sobrinho. Encontraram um caderno no qual Nayib anotava em detalhes seus encontros amorosos com outro pecador. O talibã o espancou até que ele confessasse sua falta repulsiva. Depois lhe puseram uma corda no pescoço e o enforcaram diante de seus familiares. Antes de morrer, ele foi obrigado a revelar quem era seu amante. Ele gritou teu nome, Mohsen! Além de ti, só há mais dois homens em nossa vila chamados assim. Um deles é casado. O outro é velho demais. Logo chegarão aqui.

 

Assustado, Mohsen sentiu a potência do punho de Nayib sobre seu rosto. Mesmo depois de morto, seu inimigo devolvera o golpe de maneira traiçoeira e irreversível.

― Meu cunhado ― prosseguiu o tio ―, teu pai... Quando ele souber que o sodomita falou em ti, fará com que um médico te examine. Descobrirão que já te entregaste a um varão e depois te torturarão para que tu reveles outros nomes. Não posso me envolver nisso, Mohsen. Me casarei com Mitra no final do ano. Não posso ser desonrado por causa do que tu me obrigaste a fazer. Eu não tenho culpa! Como uma prostituta infante, tu me seduziste! Por que te fizeste tão bonito? Desde pequenino, tão belo! Eu não tenho culpa. Por que puseste Nayib entre nós dois? Se continuássemos como estávamos, ninguém jamais descobriria. Tu tinhas que deitar também com aquele vagabundo imoral? Por que me traíste, Mohsen? Sempre cuidei de ti, ingrato. Sou teu tio, sou da família. Por que tu não permaneceste apenas meu? Agora... Agora tudo está perdido.

 

Mesmo que o tio recolhesse a mão suada que tapava sua boca, Mohsen jamais esclareceria que havia sido vítima de uma cilada caluniosa, de uma calculada inverdade. Assistir ao sofrimento do usurpador de sua juventude proporcionou-lhe prazer semelhante ao que Nayib experimentara ao gritar o nome de um inimigo antes de sua covarde execução.

 

― Tem um homem ― emendou o tio ―, um paquistanês de Karachi que leva para a Europa crianças e adolescentes que não podem mais viver aqui. Já acertei tudo com ele. Tens de encontrá-lo agora, pois muito em breve a lei islâmica, chegará como uma serpente à nossa porta e se enroscará em teu pescoço.

 

Angustiado, Mohsen quis saber como pagaria por sua viagem sem retorno.

 

― Não te preocupes. Ele não cobrará nada. Já está habituado a ajudar jovens delinquentes por todo o Oriente Médio. Agora, segue até esse endereço.

 

Mohsen tomou o papel das mãos de Farhad e abandonou sua casa sem ao menos olhar para trás. A vingança de Nayib parecia ter surtido um efeito contrário, finalmente iria embora de Meshed e nunca mais teria que se submeter ao desequilíbrio do tio. A liberdade estava a algumas pedaladas da rua em que morava e ele a receberia das mãos de um paquistanês chamado Badar Fateh.

 

As mulheres lavarão meus pés com óleos e perfumarias, os homens baixarão a cabeça ao me ver passar, me tornarei o califa do velho mundo ocidental. 

 

Por ser encantador, por ser irresistível, Mohsen Panahi poderia ter sido alguém importante na Europa, talvez um grande ator que falaria aos ocidentais em nome do povo muçulmano. Mas a desforra de Nayib mordeu-lhe os calcanhares antes que pudesse realizar o quimérico desejo de ter seus lábios beijados pelo estrelato.

 

Durante a travessia do Mar Cáspio, um menino morreu durante um ataque de asma. Oito fugitivos amontoados em um cubículo secreto no porão de um barco pesqueiro e um cadáver. Por dias, Mohsen aspirou a morte para dentro de suas narinas já tão envenenadas pelo odor de peixe em putrefação. Sentia-se mais um dos vermes que comiam os intestinos de seu companheiro de exílio, digeria em silêncio as vísceras do menino morto e ignorava todo o horror excedente. Era preciso manter-se são. 

 

Os outros jovens traficados fugiam de chibatadas e amputações. Apenas Mohsen escapava da morte certa. Talvez por isso fosse o único que não se arrependera, o único feliz por estar ali, o único que não desejara nem por um momento ser o defunto que se desmanchava em sucos. Permanecia cativo do mesmo desejo de liberdade que o movera até ali.

 

Sem cerimônias ou lágrimas, o corpo do jovem passageiro foi atirado às águas. Jamais conhecerão seu nome. Os garotos não se importaram, contentaram-se em saber que, apesar de morto, ele preservaria as mãos que a lei dos aiatolás teria decepado em público.

 

Em letargia, indolentes, atravessaram a Rússia, Ucrânia, Polônia e Alemanha. Durante o trajeto, por estradas toscas e de difícil acesso, chacoalharam dentro de baús fechados, escuros e sem ventilação. Quando paravam em postos de fronteira, podiam escutar Badar Fateh subornando os guardas e fiscais com o dinheiro que havia comprado nove meninos.

 

A cada diferente sotaque e troca de veículo, outro rapaz caía morto, tísico, faminto. Apenas três chegaram vivos à França. Percorreram enclausurados a região nordeste descendo até Alsace, onde cruzaram Lorraine, retornaram por Franche-Comté, e entraram em Champagne-Ardenne.

 

Na região de Chaumont foram entregues aos cuidados de um casal norueguês de aspecto gentil e delicado, o que os tornava ainda mais intimidadores. A eles cabia a tarefa de ensinar aos cativos algumas palavras em francês e deixá-los sadios e apresentáveis para quando fossem levados a Paris, onde a transação de Badar Fateh seria de fato concluída.

 

Para Mohsen, deitar naquela cama, dormir pela primeira vez em território francês, foi como sentir uma mão delicada sobre a ferida aberta pela boca suja de Nayib. Os ossos que saltavam de sua pele acomodaram-se sob os lençóis limpos e então ele suspirou como quem chega ao paraíso após uma morte truculenta. 

 

Tudo ficará bem, Badar Fateh é um homem santo, mentiu para si mesmo e adormeceu em paz pela última vez em sua vida.


Meninos iranianos que ignoram as leis de Alá não valem nada em seu próprio país, mas há ocidentais que movimentam verdadeiras fortunas apenas para deitar com um deles. Em Paris, isso não é diferente. O gosto pela carne do Oriente Médio aumentara desde os atentados do Onze de Setembro. Políticos, clérigos, milionários excêntricos, pais de família, cidadãos modelo... Enfim, homens de todo o tipo e de uma única espécie descobriram uma maneira de sustentar suas hediondas taras sem que fossem acometidos pelas inconveniências do remorso. Estuprar um garoto muçulmano não lhes parecia crime. Na verdade, acreditavam prestar um grande favor ao mundo civilizado.

 

Os exploradores drogavam suas prendas a fim de que não reagissem com selvageria aos bizarros caprichos da refinada clientela que frequentava a discreta casa de Alistair Becaud, onde crianças eram servidas em banquetes de pedofilia, molestadas e humilhadas por homens de caras brancas e monstruosas com os pés metidos em coturnos, correntes em volta das cinturas adiposas, chicotes em riste.

 

Que veut cette horde d'esclaves, de traîtres, de rois conjurés, pour qui ces ignobles entraves, ces fers dès longtemps préparés, ces fers dès longtemps préparés, français, pour nous, ah quel outrage, quel transport il doit exciter, c'est nous qu'on ose méditer, de rendre à l'antique esclavage.

 

Sob o efeito hipnótico do pico de heroína, Mohsen deixou-se currar incontáveis vezes por um número indefinido de cidadãos íntegros e exemplares. Durante os abusos, com suas pupilas dilatadas e voltadas para lugar nenhum, orava para que Badar Fateh jamais pusesse os olhos em sua irmã quando retornasse a Meshed a fim de fomentar o lucrativo mercado europeu de mais carne infantil.

 

Sinto saudades tuas, Atefeh. Ainda cantas para mim as canções que inventas? Há quanto tempo estou longe de ti? Quem sou eu agora? Ainda teu irmão? Não sei, não sei.

 

Fugir jamais fora uma opção. Não passava de um estrangeiro sem documentos, um imigrante ilegal. A quem Mohsen se queixaria de seus agressores? Quem daria ouvidos a um iraniano de dezesseis anos viciado e prostituído? Seus sequestradores eram seus proprietários, pertencia a eles tanto quanto suas gravatas Armani e anedotas xenófobas. Retornar ao Irã seria suicídio. Assim, escolhera fenecer aos poucos pelas mãos de estranhos a morrer de um único golpe pelos punhos do talibã, sob o envergonhado olhar dos seus. Também abandonara cedo o sonho de constituir família com uma mulher que amasse de verdade, pois nem mesmo a pior das mulheres mereceria ser desposada por um homem tão corrompido quanto Mohsen Panahi. Nunca teria filhos e isso o acalentava, pois não correria o risco de perdê-los para um paquistanês de sorriso fácil que traficava meninos para o inferno em troca de alguns euros emporcalhados de miséria humana.

 

Um ano antes de partir de Meshed, Mohsen assistiu a execução de dois rapazes que foram enforcados porque haviam feito amor. Um deles tinha menos de dezoito anos. Não, Mohsen Panahi e seus dezesseis anos de vida não seriam poupados caso ele ousasse macular o solo iraniano com seus pés que caminharam descalços sobre o barro seboso da besta inimiga. Em casa, esperavam-lhe bem mais que setenta e quatro chibatadas.

 

Hoje cedo, acordaram Mohsen e ordenaram para que ele se vestisse como uma prostituta. Pintaram sua cara, calçaram-lhe sapatos femininos e de saltos altíssimos, puseram uma peruca de fios violáceos sobre sua enevoada cabeça e levaram-no até o quarto de Alistair Becaud.

 

Após entrar nos aposentos do Tête e fechar a porta atrás de si, Mohsen olhou com curiosidade para o homem nu deitado sobre a cama de colchas e lençóis dourados. Não chegou a odiá-lo, há tempos havia desaprendido a sentir. Pôs uma pastilha embebida em ácido sob a língua e deixou que o divino suavemente o penetrasse, anestesiando suas extremidades nervosas.

 

― Mon petit péché  disse Alistair com os braços suspensos no ar, o rosto tomado por sensuais e obtusos apetites. 

 

Mon petit péché, meu pequeno pecado.

 

Posto de joelhos sobre o corpo do Tête, do reto de Mohsen brotou uma lâmina de cabo retrátil. Afiada, a navalha desenhou na garganta de Alistair a fonte na qual ele ainda se afoga, enquanto Mohsen assiste impassível a própria obra antes que o sujeitem a um destino semelhante.

 

Logo depois dos créditos finais de Léon, o noticiário informa que o governo do Irã produziu uma nova geração de centrífugas para aprimorar o processo de enriquecimento de urânio.

 

Que setas persas cruzem em brasa a escuridão do céu e beijem a face do Ocidente antes que essa porta seja derrubada, conjura Mohsen ao lembrar-se inevitavelmente de Nayib.

 

Teria sido minha existência mais feliz se eu houvesse me deixado enforcar ao teu lado. Tu disseste meu nome não por me odiar, mas para salvar teu namorado daquela justiça covarde. Ah, Nayib, seu tolo. Não reclames da corda que te abraça o pescoço. Não te enganes, rapaz. Eu te digo que, entre o desejo e o sonho, há destinos piores que o nó da forca e a própria morte.

 

 

Emerson Braga

08/02/2014, sábado

 

 

Comments: 2
  • #2

    Marco A (Sunday, 19 November 2017 04:33)

    Esse conto me tocou demais na primeira vez em que o li e me toca agora, com intensidade talvez maior. Primoroso, como de hábito!

  • #1

    Gina Girão (Friday, 17 November 2017 08:57)

    Takeoparil!!!!!