“HÁ OUTROS ECOS NO DESFILADEIRO”

 

Durante séculos, as mulheres foram relegadas à condição de produtoras de uma literatura menor. Mesmo aquelas que conseguiam ter um poema ou conto publicado em algum jornal de grande circulação eram achincalhadas por muitos de seus colegas homens e por críticos literários que as mandavam retornar às prendas do lar. Em seus artigos contaminados de misoginia, apontavam na escrita feminina a falta de profundidade e originalidade que, supostamente, apenas o punho masculino seria capaz de realizar.

 

Assim, muitas escritoras preferiram preservar seus trabalhos, poupá-los da sanha machista pronta para espezinhar até o mais revolucionário e genial dos escritos, caso este houvesse sido parido da mente de uma mulher. Muitas romancistas, contistas, cronistas e poetas apenas tiveram seus trabalhos publicados e reconhecidos depois de mortas. Infelizmente, para as mulheres, o mundo ainda é um lugar atravessado por injustiças. Porém, hoje, muitas se projetam e se sobressaem em espaços antes ocupados apenas por homens. Com a literatura não tem sido diferente.

 

Em seu livro Todos os abismos convidam para o mergulho, a talentosa escritora brasiliense Cinthia Kriemler não só demonstra o quanto a literatura produzida pela mão feminina é rica e inovadora, como também nos brinda com uma personagem que, de tão concreta, chegamos a sentir a agudez de suas arestas.

 

“Beatriz é uma assistente social que trabalha numa casa abrigo, lidando com crianças e adolescentes vítimas de abusos e maus-tratos. Uma profissional obstinada. Uma mulher forte, dura, ácida, desencantada. Obcecada pela vontade de se punir pela morte de sua filha única, Laura, uma adolescente de 16 anos, vítima de depressão, que cometeu suicídio há dois anos. (...) é uma mulher com muitos fantasmas. Um deles, a sua relação complicada e agressiva com a mãe, desde a infância. Divorciada de Bernardo, um homem paciente e amigo, mantém com ele uma relação de dependência emocional quase mórbida, mas ao mesmo tempo de gratidão.”

 

Todos os abismos convidam para o mergulho não teria sua força e franqueza caso houvesse sido escrito por um homem. Cinthia Kriemler escreve com coragem e selvageria completamente avessas ao que a voz de nossos preconceitos espera de uma escritora. Com períodos asfixiantes e entrelinhas que nos atingem em cheio a própria intimidade, o livro nos conduz através de uma história polida em sua forma escrita, mas inquietantemente áspera em seu conteúdo. Escrito em primeira pessoa, o romance nos obriga a confiar nas palavras de uma mulher ferida e perturbada por muitas assombrações da alma. Porém, apesar de sua rispidez e de seu descontrole, nos parece impossível não se afeiçoar à Beatriz, principalmente quando ela nos revela o quanto “gente dói”. Empatia. Cumplicidade. Mergulho.

 

Em determinado trecho do livro, lemos a seguinte máxima: "É preciso ser sonhado, esperado, idealizado, amado para se nascer." Quando encerrei a leitura de Todos os abismos convidam para o mergulho, de imediato tive a sensação de que o livro atendeu às exigências propostas em suas páginas. Cada ambiente, cada palavra... Tudo ali foi gestado com muita perspicácia e argúcia, revelando-nos uma escritora avessa a ornamentos tolos e lugares comuns. A tecedura é feita com pungência, sem eufemismos, sem a fragilidade paradigmática atribuída às mulheres.

 

Um livro feminista, mas sem ser panfletário. Um livro provocador, mas sem nos oferecer respostas prontas. Um livro forte, mas pontuado por momentos de sublime delicadeza.

 

Um livro verdadeiro, apesar das mentiras reveladas. Um livro corajoso, principalmente pelas fraquezas que explicita. Um convite para o mergulho, para a assustadora profundeza do abismo.

 

Felizmente, nem só do masculino é feita nossa literatura. Como nos diz Beatriz em Todos os abismos convidam para o mergulho: "Há outros ecos no desfiladeiro". 

 

Emerson Braga

Sexta-feira, 22/09/2017

 

         

Comments: 1
  • #1

    Cinthia Kriemler (Friday, 22 September 2017 07:07)

    Muito obrigada! Você sempre me sensibiliza! Que maravilha ler suas palavras. Eu é Beatriz agradecemos. Beijo grande ❤️