ESTROFES QUE PARECEM HABITAÇÕES LACUSTRES

Considerações sobre o livro Palafitas, da poeta Luiza Catanhêde

 

                  Há algumas semanas pude, finalmente, iniciar a leitura do livro Palafitas, da poeta maranhense radicada em Teresina-PI, Luiza Catanhêde. Pensei em deitar-me sobre a cama e devorá-lo em um único dia. Porém, logo no segundo poema, intitulado Libertino, os seguintes versos desviaram o destino de minha leitura:

 

“Meu poema come

o resto do banquete,

tateia no escuro o ventre

da estrela Dalva”

 

         Fechei imediatamente o livro. Tal arranjo lírico não poderia ser desperdiçado longe do mundo que o havia inspirado, não fora feito para ser lido de uma vez, na solidão de um quarto. Decidi, então, que desbravaria a coletânea poética a caminho do trabalho, dentro do ônibus lotado que todos os dias me leva ao Centro de Fortaleza. Eu precisava sentir aqueles versos junto às pessoas, permitir que elas me vissem extasiado, apesar da inconveniência espacial que nos constrange em nossa rotina. Enfim, eu queria que os passageiros me lessem e, ao fazê-lo, experimentassem de meu deleite ao ler Palafitas.

        

 

Li repetidamente os versos do poema As águas vão rolar, alternando o ritmo até descobrir o movimento do rio que se move sob estrofes que mais parecem habitações lacustres:

 

“A vida não para

enquanto o poeta

garimpa ouro nas águas

do improvável”

 

         São versos que revelam o tempo da poeta, tempo que corre diferente do das demais pessoas. Luiza Catanhêde nos afoga sem sofrimento em um lirismo que toca questões dolorosas.

 

Em Plantio de água, me deparei com uma das joias mais belas desse bem incrustado tesouro:

 

“Sou feita da lamparina

sobre a mesa que passeia

na casa inundada.”

 

         A poeta nos ilumina ao mesmo tempo em que joga luzes sobre a dor dos desvalidos, descortina o sofrimento de gente que luta com a mesma dignidade que pulsa nos versos de Palafitas. A poesia de Luiza nasce contra todas as expectativas, seus versos desabrocham no seio da mulher simples, filha de lavradores, que se identifica no poema A cabaça como “(...)esse fruto no avesso da terra plantada”.

 

         Do alto das palafitas poéticas de Luíza, o olhar que se debruça constata que as águas da obra também carregam um amor maior que toda a miséria presente no mundo. Um amor desavergonhado, que não se rende a convenções sociais, o que é explicitado em Transgressões.

 

         Luíza Catanhêde também rompe com o estigma castrador de que toda mulher deve enclausurar sua feminilidade na condição de santa dadivosa. Nos três versos de Plebe, a poeta nos apresenta a feminista, a mulher que não se submete a rótulos. E isso se dá como se Luíza descobrisse mais sobre si mesma à medida que escreve versos como os do poema Além do físico:

 

“Sou possuída por este lastro de

Desconforto, tatuando em mim

O que desconheço.”

 

Palafitas é um conjunto de declarações de amor, de combates dignos e coragens emblemáticas, que nos inspira corpo e alma no poema FórcepsPalafitas é o desmantelamento da ordem vigente, a revelação do que vai sob águas turvas, como lemos em Devoção ao desconhecido. É um livro para ser lido junto ao povo, pois a ele pertence. Tenho certeza de que, em minhas idas e vindas de ônibus, em Fortaleza, algumas pessoas devem ter notado minha expressão, mergulhado em meu contentamento e pensado: “Preciso beber dessas mesmas águas”.

 

Emerson Braga

 

30/03/2016, quarta-feira

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