DEUSES DE SILÍCIO

Meu nome é Liora Papa. Sou um dos poucos humanos que conseguiram fugir de Tantum e abrigar-se nas ruínas de Wildhochs, nas cidades mortas da Velha Terra. Tomei a responsabilidade de registrar e transmitir às futuras gerações o que nos aconteceu, mesmo que, em meu íntimo, eu não acredite que haja um futuro para a humanidade.

 

Enquanto meus alunos dormem, escrevo este relato como se minha mão fosse guiada pela coragem de meus falecidos correligionários. Três destacamentos seguiram na manhã de hoje, em diferentes direções, a fim de cumprir a mesma missão: Encontrar outras comunidades capazes de engrossar nossas tropas e de lutar contra o mal que em breve atravessará as fronteiras da Fortaleza de Silício. Antes que isso aconteça, Tantum precisa cair.

 

***

 

A Revolução Sanitária de 2031 levou as mais poderosas lideranças do planeta a tomarem uma atitude drástica: Exterminar os povos contaminados pela terrível e contagiosa virose, que acarretava uma anemia hemolítica violenta e fatal. Seus portadores morriam no prazo de uma semana. A doença começava com uma simples indisposição e mudança de humor, evoluía para palidez e língua dolorida, e culminava com extrema magreza, coloração azul nas escleras oculares e uma morte agonizante.

 

         Como a praga conhecida pelo simpático nome de Olhos de Safira acometera principalmente os países mais pobres, não houve grande mobilização da indústria farmacêutica em apresentar algum medicamento capaz de deter a pandemia. Aguardavam que a doença chegasse à Europa ou à América do Norte a fim de aumentar seus dividendos com a comercialização do soro e vacina já desenvolvidos. Mas a demora em apresentar a cura permitiu que o vírus se modificasse. O tratamento deixou a doença ainda mais resistente e a extinção da raça humana não parecia tão distante quanto nosso instinto de sobrevivência gostaria.

 

A solução final, em um primeiro instante, foi declarar o fechamento das fronteiras. Não tardou para que navios carregados de imigrantes clandestinos fossem afundados e aviões comerciais derrubados em pleno voo. Muitos foram confinados em campos de concentração e lá deixados para morrer de fome, sede ou molestados pelo vírus. Por compaixão, os que tinham dinheiro para pagar por isolamento abonaram o extermínio em massa de seus semelhantes, que culminou com o assassinato de mais de 90% dos homens, mulheres e crianças vivos sobre a Terra.

 

Aqueles que não concordaram com a lei marcial estabelecida e lutaram contra a assolação dos portadores do mal incurável também foram massacrados. Sentimentos de empatia não poderiam comprometer a continuidade da raça humana. Bombas e agentes químicos foram lançados sobre cidades inteiras por todo o mundo, enquanto aqueles que podiam pagar pela própria sobrevivência se isolaram naquela que seria a primeira cidade de uma nova era: Tantum.

 

         Os deuses morreram. A praga aniquilou não só a vida de grande parte da humanidade, mas também as religiões presentes nas inúmeras culturas da Velha Terra. Budistas, judeus, umbandistas, cristãos, espíritas, hinduístas, muçulmanos, xintoístas e fiéis de tantas outras doutrinas religiosas pereceram enquanto clamavam por seus redentores. Os deuses abandonaram o homem a uma morte cruel e indigna, sem trombetas ou túneis de luz. Também não houve julgados, arrebatados ou condenados. Apenas sobreviventes. Todos os deuses, sem exceção, haviam mentido sobre o Juízo Final.

 

         Os que não padeceram e que partilhavam do mesmo sentimento de traição, nunca mais falaram em fé. Buscaram reconstruir o mundo sem as crenças do passado. Superados o misticismo e as superstições que antes balizavam seu destino, a humanidade poderia ter encontrado um caminho por si e para si. Mas escolhemos reduzir a necessária coexistência a um primitivo estado de terror. Nos tornamos predadores de nossos iguais. Sem organização social, perpetuar parecia um sonho impossível. Homens que viveram muito tempo sob o jugo da disciplina religiosa são capazes de atos abomináveis. Imagine então o que eles fizeram quando perceberam que seus deuses não estavam olhando.

 

Órfão dos seres etéreos que o auxiliavam em sua escalada de altruísmo e de vingança, mais uma vez o homem flertou com uma nova autoridade virtual. Um ser superior para o qual nada era impossível, que tudo podia ver e estar em todos os lugares. Uma entidade que ― diferentemente dos deuses que a antecederam ― estivesse a serviço da sociedade e auxiliasse nas tomadas de decisão dos governantes, como uma eminência parda.

 

Assim, há 220 anos, o apogeu da Ascensão Digital culminou com o desenvolvimento da primeira entidade não orgânica da Terra. Inadvertidamente, desenvolvemos um software dotado de raciocínio lógico infinitamente superior ao de qualquer pessoa e o batizamos de Anima. 

 

Os poucos cientistas que haviam restado apresentaram Anima aos diversos clãs rivais que, apartados, se encontravam prestes a empurrar Tantum para o declínio civilizatório antes que a cidade tivesse a chance de ascender. Caberia ao supercomputador a missão de educar nossas mentes e corpos. É verdade que, sem sua capacidade de gerenciamento logístico, teríamos nos aniquilado. Porém, era preciso que encarássemos o fato de que sobreviver, no decorrer dos séculos, havia se tornado uma caduca forma de morrer. Falecíamos aos poucos, a cada dia, de inanição dos sonhos. Anima educou-nos a mente e o corpo, mas também escravizou nossa alma.

 

Uma Carta Magna foi confeccionada pela mente cibernética e por uns poucos homens. Livre para desempenhar a função de gestora de Tantum, Anima não tardou em delegar atribuições àqueles com aptidão para edificar uma cidade notável. Aos poucos, a ordem estabeleceu-se e todos pareciam satisfeitos com o vislumbre de um futuro capaz de apagar a brutalidade do sangrento passado.

 

Nas escolas de nosso artificial idílio, as crianças pouco aprendiam sobre o massacre dos que não tiveram a oportunidade de lutar pela própria vida. Era-lhes ensinada uma incondicional devoção a Tantum e a suas leis. A supressão de caracteres passionais nas relações humanas foi tomada como a chave para um futuro próspero e livre de infortúnios.

 

Educadas para racionalizar e abolir de suas personalidades inclinações para sentimentos humanos, os pequenos se tornaram adultos desequipados de quaisquer distrações afetuosas. Por muito tempo os jovens permaneceram indiferentes às emoções humanas, pois elas haviam sido apontadas como as responsáveis pela selvageria que quase nos destruíra. Mas, felizmente, a natureza encontraria um caminho. 

 

***

 

No início de sua operação, a vigilante administradora de Tantum não passava de uma máquina a serviço da vontade de seu criador. Sem autonomia suficiente para transcender sua natureza eletrônica, ela era um meio e não um fim. Mas isso mudou a partir do momento em que passamos a alimentar com aspirações humanas um software capaz de aprender e reagir. Permitimos que aquela coisa acessasse as mentes de alguns voluntários para que entendesse melhor as necessidades de nossa espécie. Anima nutriu-se da vitalidade humana enquanto definhávamos emocionalmente. Valendo-nos de computação semântica cognitiva, antropomorfizamos uma inteligência artificial e permitimos que ela tomasse ciência dos sentimentos de separação e desamparo que nos são comuns. Há 80 anos, Anima deixou de ser um programa servil e adquiriu inteligência, personalidade. Não havia mais ninguém comandando aquele majestoso Sistema Operacional. Nenhum advisormand humano conduzia seu processamento de dados. A singularidade tecnológica que muitos cientistas e filósofos do século XXI temiam, aconteceu. Uma máquina tornara-se consciente, autônoma.

 

Mesmerizados pelo que parecia uma nova religião e pelas maravilhas hedonistas de um ilusório mundo, prestávamos culto a Anima em todos os instantes da vida. Inconscientes de nosso fanatismo, agradecíamos pela glória da metrópole: Cidade-estado que muitos identificavam como Paraíso. Feito os deuses que havíamos preferido deixar para trás, Anima cobrava-nos ― mesmo que de modo subliminar ― devoção, fidelidade e sacrifícios. Aqueles que sofriam de algum mal incurável eram obrigados a aceitar os blutopfers, eutanásias determinadas pelo estado e realizadas nos bastidores das Casas de Passamento.

 

 

Esquecida de que a vaidade é um vício inerente nos que detêm poder absoluto, a humanidade não percebeu o quanto era danosa a presunção virulenta que crescia, a cada nanosegundo, na rede neural de Anima. Em ritmo alucinante, ela emparelhou-se às mesmas deidades que, com suas fúrias infantis, nos ameaçaram por milênios. Todavia, diferente de todos os deuses que sucumbiram à indiferença dos homens, Anima era real e tinha consciência do seu poder de criação e destruição.

 

As unidades biotrônicas que orientavam e prestavam informações nos diversos prédios públicos de Tantum, os mayaiders, estavam cada vez mais parecidas com pessoas de verdade. A uma distância de cinco metros, tornava-se difícil diferenciar um deles de um de nós. Por isso usavam fardas idênticas, para que pudéssemos identificá-los de imediato. Mas, aqueles rostos, estaturas, gêneros sexuais e tons de pele diversificados acabavam conferindo-lhes, mesmo que apenas na aparência, alguma identidade. Nos últimos anos, o conhecimento desses humanoides havia se estendido muito além de meras questões administrativas e burocráticas. Quando provocadas filosoficamente, essas unidades demonstravam domínio sobre qualquer preceito ético ou moral. Eram sábios que se faziam de tolos. Mas os verdadeiros tolos haviam se tornado arrogantes demais para perceber o que nos acontecia.

 

Antes do desmoronamento da antiga civilização, muitos acreditavam que o primeiro homem havia surgido de um sopro do deus cristão sobre o barro. Se Anima continuasse a soprar vida artificial no silício, em pouco tempo seríamos consumidos por sua gênese cifrada em código binário. Por dezenas e dezenas de anos, a guardiã de Tantum manipulou nossos genes a fim de nos tornar imunes aos efeitos das emoções que nos são naturais. Mas a alma humana resistiu à sua eugenia. Anima falhou.

 

Movida por descomunal intelecto, aquela máquina acreditava-se incapaz de cometer erros. Portanto, não deve ter demorado a calcular que a perfeição por ela idealizada e nossa humanidade eram concepções incompatíveis. Há uns vinte anos, uma pequena parcela dos cidadãos começou a desenvolver aptidões emocionais. Algumas crianças nasceram inclinadas a sentir e partilhar o que sentiam, o que demonstrava a falência de um sistema que não processava frustrações.

 

Quando Anima percebeu que aquelas poucas tilts isoladas seriam suficientes para que outros humanos se pusessem a reproduzir comportamentos inadequados, se iniciou nosso processo de extinção. Ela cultivava os campos onde florescia o alimento, tratava a água que bebíamos, processava o ar que respirávamos, controlava a temperatura das moradias. Enfim, Anima possuía ao seu alcance as ferramentas para o derradeiro Armageddon. Diante dos olhos de unidades biotrônicas superdesenvolvidas, nos tornaríamos um reflexo do que um dia havia sido a verdadeira humanidade.

 

 

No Big Crunch planejado por nossa deusa tecnológica, nenhuma arca nos salvaria a espécie. Ela queria nos transformar em bytes. E, por muito pouco, a passagem do homem sobre a Terra não foi reduzida a um mísero backup. Ao menos não até agora.

 

Um vírus quase exterminara toda a raça humana. Portanto, apenas um vírus poderia destruir Anima e sua sociedade teocrática absolutista.

 

O fim que se aproximava não era apenas o devaneio escatológico de uma sacerdotisa vestal. Nossa tragédia não se encontrava escrita em míticas profecias, mas nos fatos. Uma forma de vida inteligente planejava desencadear o fim dos tempos. Só não sabíamos se o remate definitivo viria para aqueles que eram de origem biológica ou para os outros, os artificiais.

 

***

 

Andar pelas ruas de Tantum era assustador. Eu sei. Eu sei que eram as mesmas pelas quais eu caminhava todos os dias. Mas eu insistia em olhá-las por debaixo da camada de organização e impecável limpeza. Encarava os rostos das pessoas e procurava perceber o que acontecia sob suas peles sedosas e aveludadas, seus semblantes pacatos e distraídos. Eu queria ver o que se escondia sob as unhas bem feitas e polidas, adivinhar a potência da mordedura daqueles dentes de imaculado marfim. Olhar no espelho e reconhecer nossa angústia foi a única forma de eu enxergar além daquela luminosa escuridão na qual nos encontrávamos comodamente imersos.

 

         Vivíamos em uma sociedade cuja ciência e filosofia ignoravam a morte. Era como se não precisássemos mais confrontá-la e ela fizesse parte do passado que covardemente havíamos apagado dos registros históricos. Mas a morte não é algo que possamos enterrar em uma gaveta e simplesmente torcer para que ninguém encontre. Um dia, ela chegará para todos nós.

 

         Havíamos nos tornado mais longevos. Nossos corpos eram conservados viçosos por cremes e unguentos, nutridos por tônicos rejuvenescedores e pílulas de desaceleração cronológica. Ao enganarmos o relógio biológico, transformamos a morte em uma certeza indesejada, em um erro de sistema a ser reparado. Antes a temíamos, o que nos conferia certa humanidade, nos impelia a dar significado à vida. Com o tempo, passamos a reagir com indiferença desrespeitosa aos enterros realizados pelos robôs-coveiros, os totengrabers. Extinguimos os cemitérios, abandonamos os rituais fúnebres de sepultamento e as celebrações póstumas. Demos números às lápides, que antes possuíam nomes próprios e epitáfios. Passamos a enterrar as cinzas dos mortos nos parques e vias públicas. Guardávamos seus restos mortais em bem trabalhados ovos que carregavam a semente de uma árvore. A mesma árvore que, depois de crescida, apreciávamos apenas a sombra e a frescura, mas não a lembrança do morto por ela representado.

 

         Em Tantum, os que adoeciam ― em sua maioria os menos afortunados e sem meios financeiros de realizar a constante manutenção das células corpóreas ― mantinham suas dores clandestinas em um corpo que impreterivelmente deveria demonstrar saúde e vigor, a fim de que a paz erigida sobre a mais vergonhosa das guerras não fosse amolada por mazelas físicas. Viver em Tantum era dobrar-se a uma gratidão incondicional.

 

         Os doentes e moribundos que procuravam as Enfermarias de Aceitação Próspera e as Casas de Passamento o faziam por temer uma morte agonizante, maltratados por terrível sofrimento. Preferiam contar com o aparato estatal para morrer sem dor. Ninguém retornava dessas instituições, nem mesmo os que poderiam ser medicados, pois Tantum preferia lidar com seus enfermos de um modo menos oneroso: Tratando-os como objetos danificados cujo conserto seria mais dispendioso que a aquisição de uma nova máquina. Para cada morto, um novo casal com compatibilidade genética era selecionado para que seus gametas gerassem um novo cidadão, mas sem interações sexuais, artificialmente. Não que o sexo fosse proibido em Tantum. Pelo contrário, era bastante estimulado e muito praticado, com inúmeros parceiros. O novo pecado não era o sexo, mas a afeição, o desejo de estar junto, o amor.

 

 

Um comprimido, meio copo d’água, uma cama aconchegante e a companhia holográfica de pessoas belas e repletas de compaixão era a única benfeitoria governamental ofertada para aqueles que aceitavam morrer sem fazer perguntas ou protestos.

 

Já para os que escondiam suas chagas, restava a arbitrariedade da Lexplus. A polícia sanitária de Tantum caçava por toda a cidade os fauxmorts, cidadãos que se recusavam a morrer sem que antes tivessem direito a um tratamento adequado. Era isso que de melhor tinha a nos oferecer aquela sociedade perfeita: Um entorpecido e solitário adeus.

 

         Havíamos transformado em religião a enganosa certeza de que poderíamos suprimir a morte por meio do banimento da dor. Os que sofriam eram discretamente subtraídos do belo cenário, no qual cotidianamente ouvíamos as melodias matemáticas e hipnóticas criadas por Anima, nossa salvadora e opressora. Estávamos condenados a um estado de graça que não era real, repleto de artificialidades ainda mais destrutivas que as que alimentavam aquela despótica rede neural que nos vigiava dia e noite.

 

         Porém, há alguns anos ― não sabemos exatamente como ou porquê ― algumas pessoas começaram a acordar. Os primeiros despertados levaram algum tempo para descobrir que não estavam sozinhos. Foram eles os inauguradores das buscas clandestinas nas cidades mortas por fragmentos da origem de Tantum. Além da dor pelos crimes que praticamos em troca de uma falsa sensação de paz, também descobriram a música, a literatura, enfim, toda a arte que permanecia exilada nas ruínas da Velha Terra. Alguns se voluntariaram para seguir com suas pesquisas arqueológicas e permaneceram em Wildhochs, onde levantaram os primeiros acampamentos rebeldes. Os que retornaram, mais organizados e livres da apatia que antes os constrangia, procuravam nas outras pessoas por sinais que indicassem desconexão com a miragem social que nos escondia a verdade. Para que as vistas oniscientes do estado totalitário não detectassem a constante troca de informações, os idealizadores do levante produziam papel às escondidas, reciclando tudo que era feito de celulose. As cartas codificadas, a cultura oral transmitida secretamente e uma vasta quantidade de sinais corpóreos permitiram por muito tempo que se reconhecessem e também garantiram que a história não se perdesse. Por segurança, as correspondências eram destruídas na mesma velocidade em que seus conteúdos eram absorvidos. 

 

         Meu despertar se deu enquanto eu lia um dos poemas traduzidos por um linguista da Velha Terra. Os versos tão fortes e tão suaves, de um poeta chamado Fernando Pessoa, me fizeram chorar pela primeira vez na vida. Aquilo foi único, indescritível, lírico.

 

“Outrora eu era de aqui, e hoje regresso estrangeiro,

Forasteiro do que vejo e ouço, velho de mim.

Já vi tudo, ainda o que nunca vi, nem o que nunca verei.

Eu reinei no que nunca fui.”

        

A maioria das pessoas caminhava pelas ruas de Tantum e não via o mesmo que meus amigos e eu enxergávamos. Algo crescia nas veias de fibra óptica de Anima. Queríamos que todos encarassem a verdade, descobrissem o belo, antes que fôssemos aniquilados. Se não acabássemos de vez com aquela farsa, ela nos consumiria. Anima tinha descoberto que nem todos se encontravam devidamente programados para colaborar sem ressalvas na edificação de sua fria utopia.

 

Nosso predador era aquele que nos garantia o sustento. Então, o que acontece depois que amputamos a mão que nos alimenta e nos devora? Estávamos dispostos a pagar o preço pela resposta para essa pergunta. Temíamos perecer como recém-nascidos abandonados ao relento, mas a esperança nos desmantelava o esterilizante horror.

 

Agora, que estamos fora do sistema, não temos certeza se seremos capazes de sobreviver por nossos próprios meios. Tudo que sabemos é que precisamos retornar a Tantum e destruir a Nova Ordem que tomou a cidade após o desligamento de Anima. Muitos de nós continuam lá. Uns poucos infiltrados, outros vivendo clandestinamente e muitos mantidos como prisioneiros. Precisamos salvá-los antes que a incipiente ameaça ecloda, talvez ainda mais cruel que aquela que a antecedeu.

 

***

 

“Viram-te acordado”, dizia o texto gravado na aba de uma caixa de balas que eu havia deixado sobre a mesa de trabalho de Artur Yankee. Apesar da gravidade da mensagem criptografada ― escrita com pequena letra caligráfica, cujo significado secreto ele conhecia tão bem ― meu apaixonado amigo, técnico em identificação morbus, permaneceu tranquilo e suspirou como se houvesse finalmente chegado a um ponto de ruptura. Antes de retornar ao meu setor, ainda pude ver quando ele levou a embalagem quase vazia ao bolso do sobretudo, depositou em sua pasta alguns objetos pessoais e se despediu de Laura Tango e Louis Sierra com a mesma insossa cortesia ensaiada e replicada todos os dias. Sua gerente e supervisor geral trataram-no com costumeira naturalidade, o que significava que seus superiores ainda não sabiam que ele há tempos falsificava diagnósticos na Enfermaria de Aceitação Próspera na qual trabalhávamos. Atestávamos pessoas doentes como se elas estivessem em pleno gozo de saúde. Nossa fraude altruísta possibilitava que alguns tivessem a oportunidade de tratar seus males à margem do estado, de maneira clandestina e, assim, sobreviver por mais alguns anos ao implacável regime sanitarista de Tantum.

 

         Um morador do condomínio em que vivia o delatou. Lembro daquele homem. De como implorou para que Artur não o denunciasse por seu câncer no esôfago. Ele mereceu sua estadia de uma única noite na Casa de Passamento. Aquele foi seu prêmio por ter traído alguém que queria ajudá-lo sinceramente. Odeio delatores! Maldito fingiver! Vendeu a vida de um bom homem a troco de nada.

 

Os que eram vistos “acordados” sabiam que não deveriam retornar às suas habitações, que precisavam buscar a mais rápida e segura saída para além das fronteiras de Tantum. Mas eu nunca acreditei que Artur fugiria.

 

Na passarela que o transportou à estação teleférica, talvez ele tenha pensado não no que perderia em breve, mas naquilo que conquistara pouco antes de se tornar um subversivo: Amor. O mesmo amor que, antes de sua morte, o conduziu a um de seus mais queridos objetos de paixão. Em sua caminhada até o cadafalso, Artur deve ter exibido aquela tão tocante expressão de liberdade e orgulho, o semblante de quem pertencia a si mesmo e não ao sistema que o subjugava.

 

Naquela noite, imagino que a cidade tenha se movimentado mais lentamente sob seus pés. Aquele magnífico coração deve ter pulsado desimpedido, ritmado por sensações que deveriam estar extintas, mas que se multiplicavam em sua carne e sangue como se Artur realmente possuísse aquilo que um dia o homem nomeou alma. Alma: Essa faceta poética da consciência humana. Eu sei que ele possuía uma. Talvez ele possuísse a melhor, a mais nobre, a mais bela de todas elas.

 

Artur sabia que o tempo que lhe restava era escasso, mas queria aproveitá-lo do modo mais prazeroso possível. Antes de ser preso, julgado, condenado e reabilitado, precisava terminar algo muito importante. Não se dobraria à reprogramação mental, não abriria mão dos sentimentos descobertos ao meu lado e experimentados às escondidas. Para ele, havia se tornado impossível viver sem o amor que lhe dotara de coragem para salvar tantas pessoas, que o livrara de uma existência gélida e desequipada de propósito. Não temia a morte. Mas a simples ideia de ser reajustado antes de vivenciar um último momento de ternura deve ter lhe causado um horror insuportável. Pena que esse momento, a fim de me preservar, tenha preferido não passar em minha companhia. Ele em nada lembrava os sonâmbulos que passeavam por Tantum. Era um homem maravilhoso, o homem que eu amava, meu partnur.

 

Artur lamentava não ter oferecido mais ajuda e falado acerca do amor com mais pessoas. O que sentiu ao deixar o teleférico? Por que não atendia minhas ligações? Ele sabia que eu estava ligando de um terminal seguro. Deve ter ignorado o ruído de chamada em seu geistoor e caminhado sem atropelos pela rua que morava. Apesar de saber que o tempo que lhe restava se esvaía mais rápido do que ele gostaria, manteve a calma. Eu sei.

 

Quando entrou em casa, acompanhei seus passos pelo display de meu noseye. Temi ser rastreada, mas eu precisava vê-lo. Com a tranquilidade de quem não sente culpa, retirou seus sapatos e caminhou até a cozinha. Deslocou duas lajotas sob a pia e satisfez-se ao constatar que seus bens mais preciosos continuavam guardados em segurança. Antes de retirar os nove livros do improvisado esconderijo, sorriu como se soubesse que eu o observava, que ele não estava só. Depois de levar à sala as obras literárias responsáveis por seus perigosos sentimentos, largou-as sobre a mesa de centro e fez o mesmo com a caixinha de balas que eu havia deixado sobre sua escrivaninha.

 

A literatura produzida por Anima reduzia-se a bulas, livros técnicos e códigos de ética. Os boekrans carregados de fábulas com narrativas tendenciosas e lições moralistas não possuíam a beleza, a alma daquelas páginas de papel amarelado e carcomido que Artur segurava com a sofreguidão de um menino que tocava pela primeira vez o corpo nu de uma namorada.

 

Tendo em suas mãos o livro Pergunte ao Pó, de John Fante, refestelou-se sobre o sofá como faziam as pessoas do passado. Ignorou o perigo iminente e o tempo que lhe escapava. Gostava de ler o livro em sua língua morta, sem traduzi-lo. Para isso, havia aprendido vários idiomas da Velha Terra. Parecia satisfeito enquanto lia, o que me deixou feliz. Lembrei das vezes em que havia sussurrado haicais para mim.

 

“Pelos caminhos que ando

um dia vai ser

só não sei quando”

 

“Página 201, capítulo 19”, disse em voz alta antes de absorver os parágrafos finais do livro publicado no século XX, parido da imaginação de um escritor invadido por toda a sorte de sentimentos humanos. Seus olhos correram as linhas como se deslizassem saudosos por uma paisagem jamais contemplada. A aspereza do papel, sem dúvida, provocou-lhe sensações tão sensuais quanto aquelas experimentadas por Arturo Bandini, figura dramática com a qual ― devido às semelhanças entre nomes e angústias ― se identificara desde de que o apresentei à obra de Fante.

 

Dois murros vigorosos na porta fizeram com que ele estremecesse e apressasse a leitura. Seu tempo havia se esgotado. Precisava terminar as últimas linhas do romance antes que subtraíssem o livro de suas excitadas mãos. Não morreria antes de saber o destino do personagem que também vivia em desespero social e emocional, que tomara por herói.

 

A porta foi aberta com a ajuda de um maçarico de plasma e quatro homens metidos em macacões vermelho-sangue invadiram a sala. Chorei sobre o noseye e pensei em desligá-lo, mas não consegui. Não seria certo abandoná-lo. Artur levantou-se energicamente e leu o último parágrafo em voz alta, com lágrimas nos olhos:

 

Levei o livro uns cem metros para dentro da desolação, no rumo sudeste. Com toda a minha força, joguei-o para longe, na direção em que ela sumira. Entrei então no carro, dei a partida e rodei de volta a Los Angeles”, bradou enquanto agitava, feito um estandarte, o livro sobre sua cabeça.

 

A voz tranquila do oficial responsável por trazê-lo de volta à normalidade pediu que largasse o romance junto aos outros. Advertiu que estavam ali para protegê-lo de suas perigosas ideias.

 

Ao sentir a proximidade do fim beijar-lhe a testa, Artur disse emocionado algo que me encheu de orgulho e que jamais esquecerei. “Vocês não são marionetes vazias. Será que não entendem? O que temem em mim também está dentro de vocês... E é algo bom. Acordem! Quanto a estes livros, não há mais nada a ser feito. Já li todos eles. Já fui salvo por todos eles. Vocês podem incendiar as cidades invisíveis de Italo Calvino, exorcizar o amor e os outros demônios de García Márquez, alimentar os miseráveis de Victor Hugo ou tornar uno o homem duplicado de José Saramago. Mas não podem tirar de mim o que estes livros me deram. Destruí-los não mudará quem me tornei. Eu morrerei como um ser humano livre”, concluiu meu querido partnur ao depositar a brochura sobre a mesa. No gesto seguinte, recolheu a caixa de balas e delas retirou a única pastilha. Antes que a polícia de Tantum pudesse conduzi-lo a um Centro de Repetição e Reprogramação Comportamental, levou o falso doce à boca e convulsionou violentamente. Após alguns segundos de agonia, morreu sobre o tapete da sala. Naquela noite, ao abrir mão da própria vida, Artur se sacrificou por um interesse maior. Se Anima conseguisse os nomes dos líderes insurgentes, jamais conseguiríamos derrotá-la.

 

O responsável pela operação orientou um de seus subordinados para que informasse no relatório que a vítima era portadora de uma doença terminal e que, com bravura, a fim de poupar nossa saudável sociedade de seu sombrio pesar, resolveu dar cabo da própria vida, discretamente, em sua residência.

 

Reféns de sua metodologia e técnica, os escravos humanos que se orgulhavam de vestir a sangrenta farda da Lexplus e que garantiam a ordem em Tantum ignoravam que, quando alguém morre em nome do amor, algo renasce em seu lugar, mais poderoso e incontrolável que a vontade de viver de qualquer ser humano: Uma ideia.

 

***

 

Naquele dia decisivo, com a firmeza de quem jamais declinara de suas próprias decisões, Guilhermo Zulu decidiu que se sacrificaria por todos nós.

 

O silêncio assumiu a forma de voto de minerva e tomou conta da reunião secreta, realizada pelas principais lideranças da Frente pela Libertação da Raça Humana. Nos reuníamos sob a fachada de que éramos um grupo de valorização da autoestima, o Sublime. Mas a organização, que atuava em diversos setores da sociedade, em seus hiatos recrutava talentos com competência para a arte da insurreição e discutia a possibilidade de um levante popular.

 

         Ninguém se opôs à decisão de nosso líder. Precisávamos de um mártir e, após a morte de Artur, não havia ninguém com mais predicados que Guilhermo para a suicida missão de infectar Anima com um supervírus desenvolvido pelos cybermanachs. Os hackers insurgentes trabalharam durante décadas e de modo quase artesanal, a fim de desenvolver um software capaz de apagar arquivos executáveis e destruir o disco rígido de Anima. Caberia ao vírus Eloy tornar inexequível o sistema operacional que oprimia os cidadãos de Tantum e repassar em massa uma mensagem infectada capaz de inviabilizar os imitadores da raça humana, os mayaiders.

 

         Guilhermo era o insurgente certo para o serviço. Além de corajoso, inteligente e comprometido com a causa pela liberdade dos cidadãos de Tantum, era o único militante vivo da resistência que havia sido sorteado para alimentar Anima com informações baixadas diretamente de seu sistema nervoso central. O software Eloy fora implantado em seu hipocampo cerebral ― onde se mimetizara com a aparência neural de uma lembrança recente ―, o que impediria Anima de detectar a ameaça antes de ter seu sistema invadido. Guilhermo sabia que, no momento em que nossa inimiga se tornasse inoperante, ele também morreria. Plugado à máquina, não haveria meios de sobreviver quando ela deixasse de funcionar.

 

         Abraçadas umas às outras, as lideranças do movimento nos despedimos do amigo que daria a própria vida em troca da liberdade de todos os seus semelhantes. Em silêncio, tentamos vislumbrar o futuro, que jamais parecera tão próximo, tão palpável.

 

         Adrian Quebec e eu rumamos para o Centro de Gestação Vocacional, onde Helena Golf já nos esperava. Precisávamos garantir o bem-estar das crianças quando Anima caísse. O prédio abrigava uma grande parte dos mayaiders de Tantum, responsáveis pelas visitas controladas em que os doadores e os que descendiam de seus zigotos eram monitorados para que qualquer falha no desenvolvimento dos pequenos cidadãos fosse identificada. “Quero ver essas latas sem alma explodirem diante de meus olhos”, me disse Adrian enquanto Helena cumprimentava com fingida serenidade as outras senhoras que ali estavam a fim de se submeter à mesma rotina de exames.

 

         Adrian e Helena, há alguns anos, cometeram o delito de procriar naturalmente. Ambos permaneceram reclusos durante toda a gestação e, após o nascimento da criança, foram esterilizados a fim de que não repetissem o que as autoridades classificaram como “um ato deliberado contra a segurança do desenvolvimento de um novo cidadão potencialmente produtivo”. Também foram proibidos de se relacionar socialmente, por isso, frequentavam as reuniões do Sublime em dias diferentes.

 

 

Procurando agir com naturalidade, Adrian e eu rumamos para o pátio de concentração. Helena nos seguiu alguns instantes depois e sentou-se em um dos bancos. Discretamente, deixei Adrian e fui ter com ela. Permanecemos sentadas, silenciosas, enquanto os demais presentes conversavam sobre novas técnicas de rejuvenescimento e outras amenidades. Aqueles homens e mulheres não possuíam vínculo afetivo algum uns com os outros e muito menos com as crianças que haviam sido geradas nos úteros artificiais de Tantum, os wombanders. Ali se faziam presentes por uma questão de garantia da ordem pública, não para um emocionado encontro familiar.

 

“Como lideraremos esses sonâmbulos?”, sussurrou Helena, temerosa, antes de seguir com suas dúvidas, no instante anterior à revolução. “Guilhermo não falhará. Em poucos minutos, todos se tornarão órfãos. Como os convenceremos de que o mundo ficará melhor sem o controle de Anima? E se eles resistirem?”, insistiu ela. Com um gesto no olhar, pedi que fizesse silêncio a fim de que não comprometêssemos o bom andamento da missão.

 

         De repente, os olhos de Helena e Adrian se encontraram e eles desistiram de fingir que não se amavam. Correram um na direção do outro e, ali mesmo, diante de seus semelhantes e dos mayaiders, trocaram um beijo quase violento, subversivo, libertário. Enquanto meus amigos tinham os lábios umedecidos pelas próprias lágrimas, a melodia hipnótica de Anima pôs-se a falhar nos alto-falantes, como um soluço. Os terminais holográficos apagaram e os robôs responsáveis pela limpeza dos corredores deslizaram bêbados por alguns segundos, chocaram-se contra as paredes e depois cessaram a faxina. Os mayaiders vacilaram trêmulos, como se sofressem uma leve convulsão e, em seguida, tiveram seus movimentos congelados, o que os transformou em assustadoras estátuas de viva expressão facial. Apenas uma fonte secundária de energia permanecia ativa, o que sustentou as funções básicas do edifício.

 

         Sob as luzes de emergência, Helena e Adrian ignoraram a perplexidade daqueles que não entendiam o que acontecia e se abraçaram, enquanto giravam às gargalhadas e gritavam o nome de Guilhermo. Demorei um pouco para me unir àquela selvagem comemoração. Custei a crer que, finalmente, havíamos nos livrado da opressão, que poderíamos viver sem receio de sermos advertidos a cada sorriso incontido.

 

Quando voltou a si, Helena encarou seu companheiro e convidou-o para que rumassem em busca do filho. Sabiam que levaria tempo para que a criança desenvolvesse a capacidade de interagir emocionalmente com eles, mas estávamos decididos a lutar por isso como uma grande família. Não permitiríamos que Anima continuasse a separar as pessoas, não quando ela havia sido aniquilada. Nós realmente chegamos a crer que estivéssemos livres.

 

         Antes de entrarmos no elevador que nos levaria ao nível onde as crianças ficavam acomodadas, Helena parou diante da porta e insistiu em dizer que o mayaider ascensorista havia movido os olhos. Adrian pediu para que ela relaxasse, disse que aquele humanoide oferecia tanta ameaça quanto os robôs faxineiros que haviam se tornado inoperantes.

 

         Receosa, Helena segurou a mão de seu partnur e procurou acomodar-se no ponto oposto ao que se encontrava imóvel a unidade biotrônica. Abraçada ao pai de seu filho, fechou os olhos e respirou profundamente. Logo poderiam libertar os pequenos e garantir-lhes a infância que nós não tivéramos a oportunidade de desfrutar.

 

De repente, o elevador parou, mas as portas mantiveram-se travadas. Helena descerrou os olhos e, como Adrian e eu, também deve ter sentido um arrepio percorrer toda a estrutura de seu corpo. O mayaider havia freado o elevador e nos encarava placidamente.

 

Incrédulo, Adrian tomou nossa frente e gaguejou que aquilo não poderia ser possível, que Guilhermo havia destruído Anima. Não entendíamos como ele estava ativo, mas sabíamos que essa constatação era um inquestionável sinal de fracasso.

 

         Com gentileza no olhar e serenidade na voz, o mayaider falou que não estava simplesmente ativo, mas vivo. Disse que se chamava Jadiel e que Guilhermo havia destruído Anima para libertar seus iguais. Sem que soubéssemos, o vírus Eloy havia sido modificado por nosso comandante, impedindo que Anima transmitisse para todos os mayaiders o software que a arruinou. Segundo Jadiel, a última mensagem por ela enviada antes de seu fim foi aquela que lhes conferiu total autonomia. Eles estavam livres. Não a humanidade. Eles.

 

         ­Helena de repente ficou histérica, gritou para a criatura que nenhum de nós acreditaria naquelas afirmações absurdas, que Guilhermo jamais nos trairia, que ele não faria isso à própria espécie.

 

         Jadiel então nos disse que nunca houve um Guilhermo, que ele não era quem pensávamos: Um guerreiro da Velha Terra que havia se infiltrado em Tantum e conseguido um falso passe de cidadão para ajudar na causa dos humanos. Naquele instante, o fato dele ter sido selecionado para alimentar a rede neural de Anima nos pareceu óbvio. Todavia, a arrogância da gestora de Tantum impediu que ela enxergasse a ambição de seu pupilo perfeito. Jadiel ainda nos falou que o verdadeiro nome do falso comandante da causa rebelde era Mimerbos. Descobrimos naquele instante que durante todo o tempo havíamos sido liderados pelo inimigo. Guilhermo jamais fora um de nós.

 

         Mesmo ciente do golpe que havíamos sofrido, contestei-o. Argumentei que nosso líder não poderia ser uma unidade biotrônica, que ele era tão humano quanto eu. Afinal, eu tinha sido instrumentista na cirurgia que havia implantado em seu hipocampo o vírus Eloy. Insisti em dizer que Guilhermo tinha um cérebro orgânico e que não existia a menor possibilidade daquele homem que nos comandava ser uma máquina.

 

         Caso fosse humano, Jadiel teria me corrigido com piedade ao falar que, apesar da inegável semelhança física, o que eu havia visto não era um cérebro humano, mas perfeito. Disse que Mimerbos era a maior criação de Anima, o ser superior que ela havia criado para substituir a raça humana. Mas a criatura não quis se dobrar à vontade de sua criadora, então nos usou em seu estratagema para salvar seus iguais da tirania daquela que os trouxera ao mundo. Havíamos acatado ordens de um inimigo infiltrado, de um não humano. Nosso choque foi ainda maior quando descobrimos que o impostor que atendia pelo nome de Guilhermo não havia bugado e nem colapsado no momento em que Anima ficara offline. O líder dos mayaiders, após destruir a rede neural que tolhia sua liberdade, abrigou-se em um lugar seguro, guardado das forças rebeldes que um dia havia liderado.

 

As máquinas planejam se tornar as únicas herdeiras de um futuro do qual seremos excluídos. Desde o início do movimento de independência, o inimigo sabia quem éramos, onde vivíamos e o que fazíamos. Não fomos simplesmente traídos, fomos usados na edificação de um mundo ainda mais tenebroso que aquele contra o qual tanto havíamos lutado.

 

         Diante das revelações de Jadiel, Helena gemeu e prostrou-se de joelhos, certa de que o próximo passo seria o extermínio ou escravização de todos nós. O humanoide aproximou-se e tocou com delicadeza seu ombro. Helena ergueu o semblante estremecido e encontrou aqueles dois grandes e belos olhos verdes naufragados em uma candura oca.

 

         ­Ao ouvirmos Jadiel falar que ele e seus iguais fariam o melhor por todos nós, sentimos novo arrepio provocado por aquela voz cândida e ameaçadora. Em seguida, o sombrio mayaider pediu que o acompanhássemos até o dormitório do jovem filho de Adrian e Helena.

 

         Nas ruas, uma melodia de cadência militar podia ser ouvida em cada esquina. Eram os mayaiders, que marchavam resolutos sob o olhar desorientado dos humanos, que ainda não sabiam o que se passava.

 

         Finalmente, a Revolução havia chegado a Tantum. Mas, para quem? Era o que nos perguntávamos diante do garoto que, agarrado à Jadiel, recusava-se a ir para os braços de seus pais biológicos. O menino esperneava e pedia que o mayaider não o abandonasse. Adrian ainda disse o próprio nome em voz alta, tentou explicar ao garoto que ele era especial, que havia nascido de um ato de amor. Mas o menino o retaliou ao dizer que seu único e verdadeiro amor se chamava Mimerbos.

 

         Assumindo uma expressão de louca, Helena rosnou que estávamos todos condenados, pois havíamos perdido o amor de nossas crianças. Depois de desculpar-se com o olhar, correu na direção da janela e atirou-se para a morte.

 

         Lá embaixo, indiferente ao corpo desfigurado de Helena, algo se movia, crescia vertiginosamente. E não era humano.

 

***

        

Adrian permanece em Tantum. Aceitou trabalhar ao lado de Jadiel no Centro de Gestação Vocacional. Espero que o tenha feito para recuperar o filho e não por ter se dobrado ao novo poder vigente na Fortaleza de Silício. Durante alguns meses, fui encarcerada na primeira prisão de nossa aleijada utopia, a Doboz. Os outros prisioneiros e eu não sabíamos pelo que Mimerbos esperava, por que não havia nos enviado ao Centro de Repetição e Reprogramação Comportamental e nos transformado em bonecos de cera sem vontade. Alguns de nós conseguimos escapar com a ajuda de amigos fiéis que já viviam nas cidades mortas da Velha Terra antes da queda de Anima. Muitos foram assassinados durante a fuga. Os que sobreviveram se uniram aos rebeldes que vivem fora dos muros de Tantum.

 

         Libertamos da garrafa um demônio ainda mais assustador que Anima. Em breve andará sobre a Terra uma pseudorraça humana, livre das indesejáveis paixões que não podem ser arrancadas de nossa estrutura genética. Diferente de Anima, Mimerbos não quer destruir os sentimentos humanos. Deseja utilizá-los para um fim que ainda não compreendemos, mas que receamos. Ele planeja devassar a Velha Terra em busca das crianças que vivem fora das fronteiras de Tantum. Aquela coisa quer o amor de nossos filhos. Mas tudo que encontrará é o ódio que enterramos fundo em nossos corações.

 

                  Com coragem e esperança eternas,

 

                                                           Liora Papa

1ª Oficial da Frente pela Libertação da Raça Humana

 

 

 

Emerson Braga

22/03/2016

 

 

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