DESABITADAS

 

Esta casa parece uma pupila sob o efeito de cogumelos. Com o passar dos anos, ela se dilata mais e mais e mais. Qualquer dia desses me perderei dentro dela e jamais serei encontrada, pois ninguém entra aqui. Sozinhas, permanecemos cativas, emparedadas. Sou constantemente comprimida entre a falta de vontade em ir lá fora e o meu desinteresse pelo pouco que acontece aqui dentro. Afinal, é a casa que incha ou eu que venho me tornando cada vez mais acanhada, pequenina? Acredito que um dia irei desaparecer, cair por entre as fendas das lajotas ou escorrer pelo ralo do banheiro feito poeira, feito lágrima.

 

Às vezes, quando entediada, ― Deus! Sempre estou entediada! ― grito meu próprio nome e aguardo esperançosa pela ressonância, que não vem. De tanto não ouvi-lo, um dia esquecerei quem sou. Talvez eu enlouqueça, quem sabe a insanidade me transforme em outra. Quem sabe. A vida tem desses espasmos, não tem? A vida. Mas isto, esta casa... Ai, não sei.

 

Meu pai era filho único. Minha mãe perdera ainda menina seu irmão mais velho. Cresci sem tios ou primos e meus avós já estavam mortos antes mesmo de eu vir ao mundo a fim de cumprir a vulgar sina de ser sozinha, viver sozinha e morrer como apenas as pessoas solitárias sabem morrer: sem queixas. Em minha casa, jamais brincaram crianças, nunca recebi amigos, namorados, ou qualquer um desses excessos que nos condenam ao hábito destrutivo de querer mais do que devemos ter. Não quero nada. Querer é um capricho que nos avilta. Como minha mãe, como minha avó, eu não quero. Aceito.

 

Em meu jardim não há plantas, só vasos. Não crio animais e não tenho lembranças boas nem ruins. Ontem foi ontem, isso me basta. Minha vida não tem uma história a ser contada. Apenas nasci, os anos passaram e cá estou eu agora. Pronto. É tudo. Sem floreios, sem rompantes, sem reviravoltas. Não há aventuras em chulear toalhas de mesa e lençóis até cochilar, exausta. Viagens a países exóticos, amores proibidos, poções mágicas e beijos na boca de estranhos são para mulheres insatisfeitas. Senhoras como eu, nascidas para estarem sós, não reclamam de nada. Tudo está perfeito assim, apenas sendo. Sem dicotomias. Sem milagres.

 

O corredor, feito o pescoço de um cágado, acaba de se estender um pouco mais na direção da cozinha. Finjo que não vejo e me entretenho com os pontos de cruz enquanto penso em Cristo. Jamais serei traída e isso é um consolo. Agito a cadeira de balanço sem fazê-la gemer. Minhas sandálias tentam tocar o chão, mas ele se faz longe. Adormeço. Não percebo o mundo se agitando lá fora e meus olhos mal conseguem alcançar o teto retesado na direção do firmamento. O pé de Deus toca meu telhado, mas sua onisciência ignora a mulher agonizante sob a frágil casca. Ele pensa que aqui não vive ninguém. E talvez não viva. De tão grande a casa. De tão pequena a mulher.

 

Entendi tarde demais que uma vida sem amor não passa de um desastre irrelevante. Um dia, de tanto a casa se expandir e de tanto eu encolher, nos tornaremos tais quais gêmeas quiméricas: sozinhas, vazias, uma dentro da outra.

 

A casa e eu.

 

 

 

Emerson Braga,

sexta-feira, 04/08/2017

Comments: 2
  • #2

    Emerson Braga (Friday, 04 August 2017 07:35)

    Nossa, não sabia que o nome da Ísis tinha vindo daí, Ticiane! Obrigado pela leitura, minha prima!

  • #1

    Ticiane freitas (Friday, 04 August 2017 07:14)

    Fenomenal como um rascunho de um livro teu intitulado cacos de vidros de onde tirei o nome de minha filha isis obrigado por nos conceder historias como essas onde viajamos pra um mundo magico com personagens fantasticos