DESAFIO DOS ESCRITORES 2017

 

Provocação 6

 

É chegada a hora de definir o grande vencedor. As notas da quarta provocação mal saíram, os contos da quinta provocação mal foram entregues e já seguimos para a sexta e última provocação. A expectativa é grande para todos, escritores, jurados e leitores do site.

 

Estamos muito felizes com a criatividade dos concorrentes.

 

Os personagens já passearam no Parque da Cidade, na Praça dos Cristais. Deitaram num apart hotel. Atravessaram a faixa de pedestres da Rua das Noivas. Perderam-se na estação do metrô e… agora?

 

Será que serão capazes de pescar a minha provocação?

 

Será que adivinham a sexta provocação?

 

Será que terei de estabelecer a forma do conto para a sexta provocação?

 

Nada é à toa.

 

Em todos os lugares da cidade: postes, muros, fachadas, portões, há cartazes propagandeando a capacidade das cartomantes. Cartomante é o (a) personagem.

Uma das imagens famosas de Brasília é o Congresso Nacional, onde são produzidas as leis do país. Projeto de lei é o objeto-chave.

E o cenário?

 

Guardei o cenário mais improvável, Vila Amaury, para o final.

 

Muitos brasilienses desconhecem a Vila Amaury. Eu mesmo, nunca estive lá.

 

Quando alagaram as terras para fazer o lago Paranoá, a Vila Amaury, um acampamento de operários da construção de Brasília, foi alagada. Foi submersa. Vila Amaury é o cenário.

Dica — O escritor criativo não cairá na armadilha de inserir um projeto de lei para impedir as águas, tampouco uma cartomante que prevendo a inundação.

 

 

Com um pedacinho de nostalgia, sentindo o fim do Desafio do escritor – DF, desejo que a deusa da sabedoria repouse no seu conto.

ARQUEOLOGIA DO ESQUECIMENTO

 

Apoiada em Benvinda, dona Inácia desceu do carro e caminhou com seu passinho de andorinha até as margens do lago Paranoá. Segurava com força o braço da neta deputada, não por medo de que seus quase 90 anos de vida levassem-na ao chão, mas para estender solidariedade. O projeto de lei elaborado pela caçula de seu filho, que visava transformar a história da Vila Amaury em patrimônio imaterial de Brasília, havia sido vetado. O sonho de que a avó, remanescente do lendário acampamento, inaugurasse um memorial às margens do lago fora desfeito por homens comprometidos apenas com o futuro.

Assistiram em silêncio um veleiro deslizando sobre as vivências afogadas, enquanto o movimento ondulava quase seis décadas. Inácia nunca fez as pazes com o arrojo das torres do anexo do Congresso Nacional, preferiu, então, mergulhar os olhos quase sem brilho nas águas turvas do Paranoá. Benvinda permaneceu na superfície daquilo pelo que lutava e acreditava, enquanto a velha avó reconstruía na memória a arquitetura de uma cidadela perdida, tragada pelas corredeiras do progresso.

Fugia de um marido violento e da seca que havia sugado o tutano do gado de Morada Nova, no Ceará, quando chegou à Brasília na boleia de um pau de arara. Para não morrer de fome no canteiro de obras da nova capital, desempenhava função na zona do acampamento conhecido por Cidade Livre. Naquele tempo, em que quase perdera o juízo, também fazia bico de costureira e ajudante de cozinha. Sobrevivia.

Os primeiros trabalhadores que habitaram o planalto, os candangos, viviam abandonados por Deus, inebriados pelos gases de pobreza e violência que emanavam dos litros de cachaça e das apostas no carteado. Cansados de tanto descaso, alguns operários decidiram se rebelar e reclamaram da comida servida no bandejão da construtora Pacheco Fernandes. Foi o suficiente para que a milícia tingisse de mais vermelho o chão do cerrado. Mataram um bocado de gente. Assombrada pela carnificina promovida com a bênção dos empreiteiros, Inácia correu até o barraco de Paulino, um maranhense bonito feito o céu sobre suas cabeças, e o acordou. Pediu, aos gritos, que ele a levasse embora dali. Nenhum homem deveria ter seus companheiros mortos para ganhar o afeto de uma mulher, mesmo assim, não rejeitou o presente do destino. Desde que havia colocado seus pés rachados sobre o rascunho daquele delírio de aço e concreto, Paulino sentiu vontade de adoçar o amargor da boca de Inácia.

Transformados em casal, desmancharam seus barracos, juntaram alguma tralha no canteiro de obras e foram viver em outro amontoado de casebres de pau chamado Vila Amaury. Lá, Inácia lia a sorte das mulheres em troca de sardinha e perfume. As três cartas do mesmo naipe que faltavam no velho baralho de Paulino dificultavam o jogo do relancinho, mas não as predições. Dizia ter herdado o dom da avó, uma índia paiacu que enxergava o futuro nas vísceras dos bodes. Atravessavam os dias assim: Paulino levantando o Vinte e Oito, como chamavam o anexo do Congresso Nacional, e Inácia fazendo adivinhações com um baralho banguela de 49 cartas.

Os dois se davam bem, principalmente quando deitavam abraçados na rede e cantavam um para o outro até dormirem de amor e cansaço. Brigavam quando Paulino se recusava a reclamar do salário, sempre atrasado ou incompleto. Acreditava que, ao final da obra, ganharia o suficiente para realizar o sonho de tornar-se proprietário de uma bodega com sinuca e radiola. Passava dias amuado com a mulher quando ela falava que, com a conclusão do serviço, o doutor Juscelino colocaria toda a Vila Amaury dentro de um ônibus rumo ao Nordeste. Moravam sobre um terreno condenado a ceder lugar a um lago. Para onde iriam depois que as águas chegassem? “Querem as mão, mas num querem os homem!”, queixava-se a mulher. Só concordavam em uma coisa: independente do que lhes acontecesse, permaneceriam juntos. Isso se a vida não tivesse se encarregado de quebrar a promessa por eles.

Naquele dia, Inácia fazia uma leitura quando ouviu, nos alto-falantes que tocavam músicas e convocavam trabalhadores, que nove operários haviam caído no fosso do elevador do Vinte e Oito. “Paulino”, grunhiu antes de largar as cartas e correr feito doida para o local do acidente, mas o corpo de seu companheiro não estava mais lá. Fora levado em um caminhão basculante para ser enterrado sabe-se lá onde.

Depois da tragédia, as consultas rarearam. Mulher nenhuma queria o futuro lido por uma cartomante que não havia previsto a morte de seu homem e nem a própria gravidez. Inácia pariu o filho ainda na Vila Amaury, dias antes da inauguração da barragem. Não demorou muito para que a água do lago Paranoá estendesse seu véu sobre o acampamento. Muitos ainda resistiram, mas, no final, todos foram embora. Uns para o Gama, outros para Taguatinga e muitos para Sobradinho. No dia de sua mudança, com um menino pequeno nos braços e uma trouxa de roupa sobre a cabeça, chorou por ter perdido a única lembrança que tinha de Paulino, uma fotografia carregada pelas águas que lavaram da existência a Vila Amaury, as mesmas águas que lhe trouxeram as três cartas que faltavam no baralho. Foi seu consolo.

— Nunca li sorte nenhuma, não, sabia? — confessou a velha, retirando o ás, o cinco e o valete de paus de dentro do bolso do vestido, e entregando-os à neta. — Não via nada naquele baralho além da falta que essas três carta fazia. Inventei as previsão. Num fiz por mal e nem só em troca dos agrado que me davam. Queria botar mistério nas história que se encantaram debaixo dessas água. Enganei as pessoa. Sou uma mentirosa. Mas tu, não. Tu é tão louca pela verdade que tentou, por força da lei, fazer Brasília pedir perdão a nós. Já que não deu pra salvar os que levantou essa cidade, faça alguma coisa pelos que hoje mantêm ela de pé. Esse povo precisa ser respeitado como nós nunca foi, minha neta doutora. Não há água que chegue pra tanto sofrimento, o Paranoá já escondeu malfeito demais.

 

Emerson Braga

 

segunda-feira, 21/08/2017

Comments: 2
  • #2

    edson braga (Monday, 21 August 2017 13:46)

    espetacular...

  • #1

    Gina Girão (Monday, 21 August 2017 12:08)

    Inácia tinha que ter saído de Morada Nova, era? A-do-rei!!!!