ANA E A BICICLETA

 

         Perpétuo era uma dessas cidades erigidas por homens e condicionadas para atender necessidades masculinas. Seus bares, clubes e barbearias mantinham as cores e formas de suas sacadas condizentes com a macheza dos habitantes. Apenas a floricultura e o Salão Donzelinha ― escola de bons modos para moças de família, afamada por seus ricos arabescos violáceos e rococós dourados ― destoavam da arquitetura local.

 

Naquela segunda-feira, Ana pedalava por Perpétuo com a intimidade de quem tamborila uma velha cantiga, exibindo sua natureza serena de criatura avessa a movimentos bruscos. Entendia a própria existência como um maravilhoso presente do destino, apesar das promessas da revista de horóscopo jamais terem se cumprido. Às vezes sentia-se cansada de tanto fingir, mas a disciplina imposta desde a infância garantia o apropriado desempenho do papel que lhe fora designado.

 

Ao dobrar a esquina da fábrica de coldres Arconte & Filhos, Ana deparou-se com o sorriso largo do gerente de linha de seu setor. Poderia ter sido mais um dia como todos os outros por ela vividos, mas uma sensação invasora de livramento a impediu de apertar os freios. Depois de tantos anos de abuso e servidão, Ana mostrava seu dedo médio ao malfeitor de todas as costureiras da empresa. Pela primeira vez em sua vida não temia trespassar a desaprovação alheia e ferir a imobilidade dos que sempre constrangeram seus ímpetos. Buzinava, sorria e se distanciava da linha de montagem que há anos a desmantelava.

 

As previsíveis ruas de Perpétuo foram surpreendidas por uma mulher de cabelos soltos e rosto sem rubor. O vento levantava sua bem-comportada saia de operária, escandalizando os passantes que, desde a Idade Média, não condenavam mulheres pelo crime de levitação. O roçar da corrente nas catracas impelia movimento e ritmava indomáveis batidas cardíacas. Ana avançava.

 

         A bicicleta, não mais transporte nem desporto, transformava-se em extensão da mulher, ambas fundidas em uma mesma criatura bela e elegante. Cansadas de todos os mecanismos e automaticidades, desrespeitaram o trânsito organizado e não se importaram com o asfalto enfeado pelo acabamento perfeito. Não temiam atalhos, subiam calçadas, lançavam-se na contramão de todos os fluxos. Espalharam-se sem freios sobre poças d’água, enlameando sapatos Berluti e coturnos bélicos. Que voassem pelos ares todos os espaços devidos, sinalizações, cavalos de frisa e gestos de censura! Nenhuma paz institucionalizada silenciaria aquele inaugural discurso interior.

 

Refrescante era a umidade que fluía da vulva para o selim espargindo lirismo sobre o inflexível varão. A deliciosa frescura de não ser senhora, de não ser máquina e então profanar regramentos sagrados. Daquele dia em diante não viveriam mais em um mundo de leis escritas em pedra, preferiam canções.

 

         O som dos pneus contra o cascalho da zona rural trouxe-a de volta às coisas conhecidas e ordenadas. Ana franziu o cenho e, resoluta, prosseguiu até os limites da cidade que por tanto tempo mantivera seus desejos cativos. Abriu bem os olhos quando um bando de pardais voou rente aos raios da bicicleta. Só então percebeu que já havia cruzado a ponte fronteiriça e que Perpétuo inteira cabia no espelho retrovisor.

 

 

Quando o apito da fábrica anunciou o início do expediente, as trabalhadoras olharam embevecidas na direção da ponte. Nos olhos encandeados pelo brilho da mudança, luzia o reflexo da descoberta não só da existência da ponte, mas da possibilidade de atravessá-la. 

 

Emerson Braga

segunda-feira, 02/10/2017

Comments: 1
  • #1

    Gina Girão (Monday, 02 October 2017 09:32)

    Finalmente!!!!!