AGEUSIA E SEGREGAÇÃO ESTÃO

 

SERVIDOS

Há alguns dias, assisti ao emblemático A Festa de Babette, filme ambientado na Dinamarca do século XIX e de autoria do saudoso roteirista e cineasta dinamarquês, Gabriel Axel.

 

Segue uma breve sinopse que encontrei no site Adoro Cinema: Filippa (Bodil Kjer) e Martine (Birgitte Federspiel) são filhas de um rigoroso pastor luterano. Após a morte do religioso surge no vilarejo Babette (Stéphane Audran), uma parisiense que se oferece para ser a cozinheira e faxineira da família. Muitos anos depois, ainda trabalhando na casa, ela recebe a notícia de que ganhou um grande prêmio na loteria e oferece-se para preparar um jantar francês em comemoração ao centésimo aniversário do pastor. Os paroquianos, a princípio temerosos, acabam rendendo-se ao talento culinário de Babette”.

 

Como em O Banquete ― texto filosófico de Platão, escrito por volta de 385-380 a.C. ―, o filme de Axel levanta valiosos questionamentos acerca da amizade e do amor. Por meio da estupenda refeição, as personagens alimentam não só o corpo, mas também suas almas e consciências.

 

Apesar de tentarem ― quase que por toda a festa ― não sentir prazer ao comer do delicioso jantar e nem maravilhar-se com os raros vinhos, os convidados das filhas do bom pastor acabam rendendo-se aos calores, experimentam sensações há tempos adormecidas, tornam-se sinceros, afetuosos e corteses, despertam para uma beleza perdida, sepultada por insosso e impalatável passar dos anos.

 

Antes dos créditos finais, eu já estava muito emocionado. Inevitavelmente refleti sobre aquilo que eu acabara de testemunhar: Sim. O cinema é capaz de operar milagres.

 

Perguntei-me, logo depois que desliguei a tevê: Por que paramos de sentir o gosto das coisas e das pessoas? Em que exato momento nossa humanidade desenvolveu essa desgostosa ageusia e perdeu o paladar pelo que a vida tem de sublime?

 

Por que não sentimos mais o sabor destas coisas que apenas fingimos desejar, como justiça social e igualdade de direitos e oportunidades para todos? Parecemos adoecidos, tomados por uma febre que no transforma em inimigos declarados. Saltam de nossas bocas línguas violentas e intoxicadas, que nada sentem além desta raiva azeda, que roga pragas e exige penas capitais.

 

Quando foi mesmo que passamos a nos orgulhar de termos ódio de alguém ou de um grupo? O que nos levou a acreditar cegamente que a vingança é um bom caminho e que o único discurso válido é o de uma sociedade insana e opressora que pisoteia ― por questões econômicas, sociais, culturais, físicas e religiosas ― grupos marginalizados? Por que a fome de existir dos abastados precisa devorar o direito humano de permanecer neste mundo que também cabe aos menos favorecidos?

 

Em A Festa de Babette, os convidados do jantar suspeitavam que sua anfitriã fosse uma bruxa, que o banquete seria um sabá, que todos acabariam enfeitiçados. Não tenho dúvida de que as personagens foram realmente tocadas pela magia dos condimentos e temperos, pelo encanto das texturas e das sensações que fizeram cócegas em suas papilas gustativas. Mas isso foi ruim? Não! Foi libertador.

 

Precisamos nos livrar deste gosto amargo na boca, sangue que escorre de gengivas feridas por dentes trincados. Recuperar a empatia perdida e reconhecer no outro parte de nosso desejo de evoluir é essencial para que recobremos a graça perdida.

 

Diante de nossos temores acerca do presente e do futuro, vale ressaltar o discurso pronunciado por um dos personagens do filme, o general Lorens Lowenhielm, já quase no final desta bela obra prima cinematográfica:

 

"Piedade e virtude se unem.

Justiça e paz se abraçam.

Em sua fraqueza e miopia,

o homem acha que tem de fazer uma escolha na vida.

E teme o risco que corre.

Nós conhecemos o medo.

Mas não...

Toda escolha é sem importância.

Chegará a hora em que os olhos se abrirão

e finalmente reconheceremos que a graça não tem fim.

É só esperar confiante para receber a gratidão.

A graça não exige nada.

E veja, tudo o que escolhemos nos foi dado.

E tudo do que desistimos nos foi concedido.

Sim, teremos ainda de volta o que jogamos fora.

Piedade e virtude se unem.

Justiça e paz se abraçarão uma à outra."

 

 Como já perguntava a canção dos Titãs, Você tem fome de quê? Qual a razão patológica desta ânsia de comer sozinho, de engolir o mundo aos bocados, sem degustá-lo? Por que não fazer como Babette, que dividiu sua boa sorte com todos que dela precisavam?

 

Apenas quando cearmos unidos àqueles que agora canibalizamos por serem diferentes de nós, seremos livres de fato.

 

Emerson Braga

 

30/05/2015, sábado

 

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