A SENTINELA

  

Passei despercebida no instante em que entraram no necrotério. A expressão no rosto do pai era de choro convulsivo, mas sem lágrimas. Em sua cara seca e contraída resistia uma aridez dolorosa. A barba mal feita e as olheiras carregadas revelavam o quanto sofria. Já a mulher e sua serenidade sísmica insinuavam a precipitação de um novo desastre. Debruçada sobre o jovem cadáver, seus olhos pariram duas fendas sem fundo, encovadas numa cabeça quebradiça.

 

"É preciso fazer o reconhecimento do corpo", exigiram. Estavam ali a fim de confirmar o inconcebível. "Sim, é Tonico", ela confirmou, mesmo que não enxergasse naquela carcaça oca o adolescente de voz e olhar argentinos. Com habilidade maternal, passou os cabelos do filho por trás das orelhas. "Você gostava de usá-los assim", disse a ninguém. Talvez ela tenha imaginado a velocidade, as madeixas soltas ao vento, o riso anterior à queda. Com a mão pousada sobre o peito quieto e inútil, pediu ao esposo para que saíssem dali.

 

Antes de segui-los pelo corredor, vi o corpo jovial e desperdiçado ser coberto por um lençol branco. O braço, mesmo sem vida, deixou-se cair da maca e buscou pelo afago da mãe que não estava mais lá.

 

Indiferente à dor dos pais do menino morto, acompanhei-os até o estacionamento do prédio. Enquanto o homem procurava pelas chaves do carro, a mulher arrancava com os dentes o vermelho das unhas. Aproveitei suas encenações e me acomodei sossegada no banco de trás, conferindo meu rosto no espelho retrovisor antes que eles também entrassem. Atravessaram a cidade como se a geografia retardasse qualquer movimento em direção ao futuro, sabiam que jamais voltariam a alcançar o ser amado e interrompido. Apesar da obviedade de minha presença, seguiram viagem livres de qualquer inquietação. Mas, eu sei. A paz não é assim tão fácil.

 

Ninguém estava em casa para recebê-los. Pensei em descansar por alguns instantes sobre o espaço vazio deixado no sofá da sala, mas era meu destino segui-los até o quarto.

 

Sentada sobre a cama, a mulher retirou os sapatos envernizados e de saltos altíssimos. Verificava, massageando as panturrilhas doloridas, se as meias não haviam soltado nenhum fio. Ainda se distraía com pequenices quando o marido saltou sobre o colchão transformado em abismo. De cara enterrada nos travesseiros, aguardou os pulmões reclamarem por mais ar, depois se virou de lado e encolheu as pernas, roçando as pontas dos joelhos nas costas da mulher. Ela reagiu com enfado, e, desenxabida, preferiu encaixar seu corpo ao do companheiro. Dormiram.

 

Permaneci ali por muitas horas. Velei o sono daquelas pessoas que, feito crianças se recusando a acordar, adiavam nosso encontro. Pensei em lhes perturbar o descanso, provocando uma discussão ao me deitar entre os dois. Desisti. Achei mais adequado me acomodar com discrição em um canto da cama. Não demorou e meu peso fez com que se emaranhassem em um abraço devastador.

 

"Você não deveria ter deixado que eu o presenteasse com uma moto", grunhiu o pai feito um animal preso a ferros.

 

"Mesmo sendo tarde da noite, mandei ele vir embora da festa. A culpa é minha, eu matei meu filho", afiançou-se a mãe.

 

Eu havia chegado para ficar. Dificilmente seguiriam casados, pois, se me instalo, todo um repertório de acusações vem à superfície. Até mesmo as mais ridículas e desonestas cobranças são legitimadas pelo sofrimento, dilatando minha permanência por um período indeterminado.

 

 

Os homens são educados desde o nascimento a jamais admitirem minha existência. As mulheres, não. Muitas me encontram mesmo antes de pronunciarem as primeiras palavras. A outras sou apresentada depois de adultas, seja em seus lares ou nos locais onde trabalham. Sou criadora e cria de quase todas elas. Observo, sem interferir, até que me descubram em uma meia palavra, em um gesto acusador, em um silêncio intoxicante, enfim, em uma constatação aterradora. Só então deixo de ser espectadora e me torno o que sou. 

 

Emerson Braga

19/10/2017, quinta-feira 

Comments: 2
  • #2

    Gina Girão (Thursday, 19 October 2017 14:49)

    Takeoparil!!!!!!

  • #1

    Marco A (Thursday, 19 October 2017 13:06)

    Nossa! De perder o ar! Espetacular! Você tem a manha mágica de fazer as palavras sentirem. Elas também parecem impregnadas de culpa. Seu talento sempre me emociona.