DESAFIO DOS ESCRITORES 2017

 

Provocação 5

 

Este é o momento para melhorar a classificação no Desafio dos escritores. Quem não conhece uma estação de Metrô? A da Rodoviária de Brasília é a mais movimentada. Lá tudo é subterrâneo, como a cigarra que hiberna anos para renascer barulhenta longe do metrô, mas dentro do seu conto como personagem. Como você vai resolver um conto adicionando ainda um convite sem nome para uma recepção de gala no Palácio do Itamaraty ?

 

Para encontrar o acesso ao Metrô na Rodoviária é preciso descer as escadas rolantes, pegar o rumo da Pastelaria Viçosa desviando da multidão, descer outra escada rolante, passar em frente ao “Na Hora” e caminhar mais um bocadinho até chegar às catracas.

 

A cigarra é quase um símbolo brasiliense. Não por causa da fábula. É que no auge da seca, lá no início de setembro, ela e todo um elenco de cigarras resolve cantar simultaneamente. O ruído é mais alto do que um liquidificador ligado a dez centímetros da sua orelha. Cantam alto porque desconhecem a dança do acasalamento.

 

O Itamaraty é o nome do Ministério das Relações Exteriores. Um enorme tapete vermelho é estendido para receber os chefes de estado quando em visita ao Brasil em missão oficial. Os convites para as noites da gala são disputadíssimas, mesmo que isso signifique alugar fraque e tirar joias do penhor.

 

A personagem é uma cigarra. Cuidado para não escrever uma fábula ou crônica.

 

 

A MALDIÇÃO LA FONTAINE

 

Depois de trabalhar por três anos no subterrâneo do Plano Piloto, Clemilton ascenderia à superfície. Seu esforço como supervisor da estação de metrô da Rodoviária de Brasília fora finalmente reconhecido pelo destino. O convite para uma recepção de gala no Itamaraty, encontrado durante suas rondas, era a prova incontestável de que, muito em breve, trocaria as galerias pelas coberturas.

— Se livra disso, Miltinho! — advertiu-lhe um colega mais antigo. — Ninguém pega o que pertence à estação. Se lembra da Rose? Aquela bonitinha dos guichês? Pois é. Ela tentou entrar na Nicolândia com um ingresso que encontrou junto das catracas e foi atacada por um exército de formigas antes de ter a chance de se divertir.

— Cascata!

— É sério! E a alma de uma garota pegou o bilhete de volta…

Clemilton debochou da lenda urbana e beijou o convite. Depois que atravessasse os arcos suntuosos do Palácio do Itamaraty, não se sujeitaria mais ao zangarrear de passageiros insatisfeitos.

No dia da solenidade, seus primeiros passos rumo ao topo se deram nos degraus que levam à Pastelaria Viçosa. Precisava comer algo para não fazer feio na recepção e também conferir o efeito que o smoking alugado causaria nas pessoas. Foi quando a cigarra surgiu. Pousada sobre o respaldo de uma cadeira, sua presença desafiava a lógica sazonal. O conveniente seria que ela estivesse debaixo da terra, aguardando pelos cios ensurdecedores de setembro.

— O que faz aqui? — sussurrou com cumplicidade. — Ainda está longe de sua estação, amiguinha. Aliás, pensando bem, se você pode circular por Brasília em uma noite de março, o que me impede de provar do “Bolo de Noiva”?

Indiferente à excitação do aspirante a vigarista, o bichinho agitou as asas brilhantes e levantou voo, dirigindo-se às plataformas de onde partem os ônibus.

― Um sinal! ― concluiu Clemilton, maravilhado.

Pela vidraça do transporte que o levou à Esplanada dos Ministérios, o rapaz olhava para Brasília como se dela já nem se lembrasse. Trocaria o metrô por uma embaixada europeia. O futuro diplomático no exterior seria garantido não por um concurso público, mas por seu carisma. Ao dar sinal para descer, percebeu que a cigarra da pastelaria tinha feito o trajeto no mesmo ônibus que ele. Queria aquela diabinha como amuleto, mas teve de saltar do veículo e ir ao encontro da própria sorte pouco depois de ver o inseto voar por uma janela.

Uma vez sob os arcos do prédio, o medo de ser desmascarado fez com que Clemilton vacilasse. O convite não estava nomeado, mas devia haver uma lista. A fim de ganhar tempo, fingiu conversar ao celular no instante em que um grupo de recém-formados do Instituto Rio Branco dirigia-se à entrada principal. Avistando a cigarra sobre o ombro de um dos integrantes da comitiva, sacudiu seus receios no ar e tomou parte na pequena multidão, que teve o acesso facilitado pelo diretor-geral do instituto, efusivo e orgulhoso por tê-los ali.

O intruso caminhou pelo salão feito um lince, sob o incrível teto que parece flutuar. Agiu com naturalidade, apesar da pompa que lhe atordoava a percepção de pobre moço de Taguatinga. Próximo à escada helicoidal, um diplomata descrevia aos colegas a importância de seu trabalho nas relações entre o Brasil e a Namíbia. Outro grupo discutia, junto ao jardim aquático, ações humanitárias realizadas no Haiti. A fim de ganhar coragem e se aproximar de alguma roda de conversa, procurou por seu talismã alado, mas tudo o que viu foi um mundo impenetrável no qual seria difícil ingressar apenas com um sorriso. De atitude tenaz, decidiu conferir a apresentação artística da noite e, quem sabe, ganhar a simpatia de algum amante de música clássica.

A satisfação ao encontrar a cigarrinha faceira sobre a tiara de uma atriz famosa foi quase tão grande quanto o desejo de conquistar uma vida fácil. Mas seu pequeno prazer logo foi tolhido pelo estrilar ruidoso do inseto ─ que até então se mantivera silencioso ─, em total desarmonia com o quinteto de cordas que se apresentava. De repente, contrariando todos os artigos científicos de entomologia, uma nuvem espessa de cigarras interrompeu a execução de “O Guarani” e, ciclônica, avançou sobre Clemilton. Os insetos ziguezagueavam enlouquecidos e fizeram um barulho infernal, retirando o bicão de seu anonimato. Com os tímpanos latejando de dor, mal ouvia as advertências feitas pelos dois seguranças que o afastaram do saguão do Palácio aos safanões.

No caminho de volta para casa, o arremedo de gata borralheira saltou as catracas do metrô e acomodou-se em um vagão aparentemente vazio. “Ainda não foi dessa vez”, pensou aborrecido.

— Gostou da festa, Miltinho? Ouvi dizer que você dançou com algumas amigas minhas — disse uma voz jovial.

— Ai, Jesus! — espantou-se Clemilton ao perceber que uma garota translúcida se encontrava sentada ao seu lado. Pensou em gritar, mas não havia ninguém para socorrê-lo. Então permaneceu quieto enquanto a aparição revelava seu propósito.

— Jesus, não. Fantasma da Estação! — continuou a entidade. — Pouco saio para aproveitar as coisas do mundo. Deveria ter deixado meu convite no lugar onde o encontrou. No próximo dia 31 é meu aniversário, sabia? Você roubou meu presente.

— Deus… O que dizem é verdade!

— Trema! Sou a prova sobrenatural de minha própria existência.

— Pensei que você torturasse os vivos com formigas.

— Ah! O Palácio do Itamaraty merecia um pouco mais de dramaticidade, não acha? Aliás, você conhece La Fontaine? Não paro de ler desde o dia em que esqueceram um livro dele aqui. Assim como eu, ele se utiliza de animais para ilustrar suas histórias, que sempre se encerram com uma moral. Tem de tudo: mulas, lobos, ratos, lebres… Como também formigas e cigarras, que são mais numerosas no cerrado e, como todas nós vivemos aqui embaixo, gostam de me ajudar.

— Que moral devo tirar desse desastre de noite?

— A seguinte: Não se rouba de quem conduz as pessoas a seus destinos!

— Entendi. Ainda bem que não me enviou ratos…

— Ah, não! Quem os controla não sou eu, tolinho, mas o Fantasma do Congresso! — revelou com um riso antes de desaparecer no ar.

 

Emerson Braga

 

domingo, 20/08/2017

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