DESAFIO DOS ESCRITORES 2017

 

Provocação 3

 

Você está indo bem. A pressão é grande. Este será o texto da segunda decisão. Ficarão apenas os sete melhores classificados.

 

Capriche para se classificar entre os sete finalistas. Escreva um conto que tenha como cenário uma suíte de um apart hotel próximo ao Palácio da Alvorada, que o protagonista seja um homem com um sino tatuado e que o objeto-chave seja um santinho com a profecia de Dom Bosco.

 

Tudo pode acontecer entre quatro paredes de uma suíte de um apart hotel. Mais ainda se esse imóvel estiver localizado próximo ao Palácio da Alvorada, residência oficial do presidente do Brasil.

 

O sino, via de regra, tem algum significado. Será que simboliza perigo? Um sino tatuado pode tornar o tatuado em invencível na guerra contra o mal? Será que o protagonista almeja a harmonia universal, a comunicação entre o céu e a terra? Mas ouvir um sino em sonho é presságio infeliz. Seja qual for o motivo, nosso protagonista tatuou um sino.

 

Imagino que você tenha ficado curioso para conhecer a profecia de Dom Bosco sobre Brasília, impressa no santinho. Eu desdobrei o papelzinho e li: “Entre os paralelos de 15 e 20 havia uma depressão bastante larga e comprida, partindo de um ponto onde se formava um lago. Então, repetidamente, uma voz falou: “…quando vierem escavar as minas ocultas, no meio destes montes, surgirá aqui a terra prometida, vertendo leite e mel. Será uma riqueza inconcebível…”

Desafio lançado: seja criativo ao juntar os três elementos.

 

Você tem até o dia 22/05, segunda-feira para escrever um conto entre 200 e 1000 palavras.

 

Bora lá?

A HORA DO ANGELUS

 

Hospedado no Uiraçu Apart Hotel desde a noite anterior, Amadeu Bento ainda não havia conseguido dormir. Vivera por anos como correspondente no Reino Unido e, agora, se encontrava ali, em uma suíte com vista para o Lago Paranoá. Não havia planejado aquele retorno indigesto, mas o pedido partira do Palácio da Alvorada. O presidente empossado nas eleições de 2018 lhe concederia uma entrevista exclusiva após a celebração do dia de São João Bosco, que se realizaria logo mais, na Catedral Metropolitana de Nossa Senhora Aparecida.

Amadeu contemplou da varanda o enigmático céu de Brasília, enquanto formulava perguntas cujas respostas interessariam às potências europeias. Debutante na política, o presidente ainda não havia aprendido a odiar a mídia, o que facilitaria a sabatina. Depois de combinar por torpedo o horário no qual o restante da equipe deveria encontrá-lo, o jornalista resolveu desfazer a mala.

― O que isto faz aqui?! ― espantou-se, dando um salto para trás.

Não entendia como aquele santinho de Dom Bosco fora parar em sua bagagem. A gravura havia se perdido com o tempo e não deveria estar ali, arrancando o passado da cova. Amadeu decidiu tocar o pequeno impresso a fim de provar para si mesmo que sua imaginação o traía, mas o folhetinho parecia bem real. Conferiu o verso da imagem e seus olhos vacilaram. Uma profecia de Dom Bosco ─ que, supostamente, versa sobre a edificação de Brasília ─ estava lá, gravada na parte de trás do cartão. O pai foi candango na construção da Capital, partira do Ceará para o Plano Piloto levando como bagagem de mão apenas aquele santinho.

O passado se esgueirou por trás das cortinas e entre os móveis, ameaçando saltar dos espelhos. De repente, o jornalista se viu remoçado, dentro da pobre casa em que crescera na divisa de Luziânia com Valparaíso. Reviveu o dia em que, febril, o pai gritava por seu nome, implorando para que o filho fizesse a vontade do Beato José Lourenço.

― Você também ouve, Amadeu? O sino foi o sinal de que os aviões cuspiriam a morte sobre a serra do Araripe. As badaladas me salvaram! As badaladas nos salvarão!

Aquela foi a última declaração feita por seu Tonho Bento. Após a morte do pai, muitos anos antes de se formar em jornalismo e deixar o país, Amadeu tatuou um sino sobre o peito esquerdo. Mas acabou se esquecendo do amor que nutria pelo velho, também perdeu o contato com sua mãe e irmãos. Por duas vezes fora a uma clínica estética a fim de livrar-se da pintura corporal, cancelando o procedimento em ambas as tentativas. O sino permanecia ali, como se esperasse pelo momento de ressoar.

O pai de Amadeu havia sobrevivido ao massacre do sítio Caldeirão, no Vale do Cariri, e recebera das mãos do próprio Beato José Lourenço o velho santinho de Dom Bosco. Apesar de ainda ser menino naquela época, seu Tonho lembrava-se com clareza das palavras do profeta, ao dizer que São João Bosco havia se enganado.

― Não vai brotar leite e mel da areia vermelha do cerrado. O Planalto Central vai coroar um matador de miseráveis ― predizia José Lourenço.

O Beato havia profetizado que em 31 de janeiro de 2019, durante a celebração do Dia de São João Bosco, um filho do Sítio Caldeirão teria de assassinar o presidente da república dentro da casa da mãe de Cristo, na hora do angelus. Segundo o líder religioso, o político precisaria ser destruído para que um verdadeiro representante dos pobres ascendesse ao poder.

Determinado a não se deixar influenciar pelos delírios de seu pai morto e pela falácia de um messias do sertão, Amadeu rasgou o santinho e bebeu três garrafinhas de vodca, o que lhe trouxe alguma quietude. Era um jornalista conhecido, um homem prático, não seria vencido por ideias plantadas em sua cabeça quando ainda era rapazote. Aprontou-se com elegância depois de um banho rápido e desceu para o hall do apart-hotel, onde sua equipe já o aguardava.

Chegando ao pátio de entrada do Templo de Nossa Senhora Aparecida, Amadeu sentiu-se observado pelas estátuas de bronze dos Quatro Evangelistas. Elas sussurravam em outra língua, sem mover os lábios metálicos, e sibilavam a inevitabilidade das coisas desde sempre escritas. Já dentro da nave, os seletos convidados participaram da missa em celebração ao santo do dia. O presidente da república, posto de pé na primeira fileira, orava com sua esposa e filhos. Também posaram com o arcebispo para fotografias quando a liturgia foi encerrada.

Durante um coquetel servido nas dependências da igreja, um assessor presidencial pediu para que Amadeu o acompanhasse. Neste instante, feito a voz de Deus, os sinos do campanário anunciaram a terceira hora do angelus. Amadeu sentiu como se a tatuagem em seu peito badalasse, estraçalhando sua carne e ossos. As vozes do pai e do Beato José Lourenço gritavam dentro de sua cabeça e intensificavam o desconforto causado pelos sinos. Ao lado da réplica da Pietá, o presidente o aguardava para a entrevista que seria feita diante da estátua de São João Bosco. Amadeu avançou sobre um dos agentes que fazia a guarda presidencial e, em um gesto veloz, conseguiu arrancar a arma do coldre. Ainda disparou dois tiros antes de ser alvejado pelos demais seguranças.

Caído sobre o chão, o atirador percebeu que jamais havia deixado a suíte do apart-hotel. Olhando para os diversos frascos de remédio junto ao seu corpo, lembrou-se de que era portador de um grave transtorno esquizoide. A estátua ferida de Dom Bosco, sentada sobre o sofá do quarto, fazia de leque uma dezena de santinhos. Enquanto o vermelho do sangue se derramava sobre a alvura do mármore, o porteiro do prédio lamentou com gravidade a manchete noticiada em seu radinho de pilha: O presidente eleito havia morrido de um mal súbito na exata hora do angelus.

 

 

Emerson Braga

sexta-feira, 18/08/2017

Comments: 1
  • #1

    Henrique Campanilli (Friday, 18 August 2017 05:56)

    Essa eu nem sei o que dizer. Estou atônito. Me pareceu uma mistura com os anos 80, de Tancredo. Incrível!